Como demolir as muralhas dos juros no Brasil?

Data: 01/05/2016
ÉPOCA

No 9º andar de um edifício na Avenida Faria Lima, em São Paulo, uma das artérias do mercado financeiro nacional, o empreendedor Marcelo Ciampolini respondia a uma sabatina feita por advogados de um banco. A reunião havia sido convocada pelo presidente da instituição. Ciampolini penava para explicar aos advogados que o negócio que propunha, baseado em empréstimos para pessoas físicas, tinha de ser 100% digital. "Se entrar papel no meio, vocês vão enterrar o negócio aqui", afirmou.

Outro encontro, em outra cidade, com configuração semelhante: os empreendedores Jorge Vargas Neto e Paulo David sentaram-se numa sala na sede do Banco Central (BC), em Brasília, com dez representantes do órgão regulador do setor bancário. Vargas Neto e David tentaram, durante quatro horas, convencer os executivos e técnicos da segurança do negócio que criavam. A empresa nascente atuava no peer to peer lending - empréstimos entre iguais, numa tradução livre. E queria que um cidadão, para criar um negócio próprio, pudesse contratar um empréstimo online sem pisar numa agência bancária nem assinar folhas de papel. Ah, sim: pagando juros mais baixos e sem correr o risco de fraude. Diante do ceticismo dos interlocutores, Vargas Neto recorreu a uma comparação: sua empresa faria com empréstimos o que o Airbnb faz com imóveis. Quem tem oferece e quem precisa usa, sem complicação, mas com supervisão. O empreendedor saiu da reunião com a impressão de que uma executiva do BC havia gostado da metáfora. Ela é útil mesmo.

As duas pequenas empresas cujos negócios foram apresentados nas reuniões descritas acima - a Lendico, na sede do banco BMG, em São Paulo, em 2014, e a Biva, na sede do BC, em Brasília, em 2015 - são exemplos de um tipo de negócio ousado. Elas se propõem a usar software e inteligência para tornar mais eficiente um mercado antiquado, o de empréstimos. Outras a entrar nesse nicho são Bankfacil, Geru, Intoo e Urbe.me. Todas querem fazer, no segmento financeiro, o que o Airbnb faz com hospedagem e o Uber com transporte urbano. E a missão à qual se propõem é de alto interesse social.

Na semana passada, o BC manteve a taxa básica de juros em 14,25%, o nível mais alto em dez anos. O país tem juros reais superiores a 4% ao ano, os mais altos do mundo. Outros países com problemas e com juros reais considerados altíssimos para o padrão global ficam bem atrás, como China (2%) e Rússia (3,5%), segundo o site de finanças MoneYou. A muralha de juros bloqueia boa parte da atividade econômica no país - ela incentiva quem tem dinheiro a apenas emprestar, em vez de tentar criar ou apoiar negócios produtivos. Incentiva o empréstimo de curto prazo, em detrimento daquele que mira longe. E dificulta a obtenção de empréstimo por parte de quem precisa.

Dependendo de quem tenta explicar a existência da muralha, surgem diversos motivos - o baixo nível de concorrência entre os bancos, a falta de poupança no país, a inflação cronicamente elevada, a forte cobrança de tributos e de recolhimentos compulsórios que o governo impõe aos bancos e por aí vai. Um outro motivo, sempre lembrado, é a inadimplência. Ela tem a ver com lacunas de informação por parte de quem empresta dinheiro. Quando acredita ser difícil distinguir os bons dos maus pagadores, o emprestador se protege cobrando taxas altíssimas de todo mundo. Aí entra a inteligência das pequenas empresas de tecnologia. "O principal ativo dessas empresas é ter uma boa estrutura para determinar o perfil do cliente. Um bom pagador vale mais que vários pagadores duvidosos, mas identificar esse bom pagador é difícil", diz Alexandre Pacheco, coordenador do Laboratório de Empresas Nascentes de Tecnologia da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.

Para voltar aos casos aí de cima: a Lendico nasceu na Alemanha e foi trazida ao Brasil por Ciampolini. Ela funciona como um correspondente bancário do BMG. O dinheiro vem do banco. A parceira menor avalia o perfil de quem pede o crédito e o risco de inadimplência, define a taxa e faz o empréstimo. O BMG paga à parceira uma comissão a cada recebimento. A aproximação entre os dois parceiros não foi simples. A Lendico havia impressionado o presidente do BMG à época, Antônio Hermann, e ele fez as negociações começar. Vários de seus executivos hesitavam diante da novidade, e Ciampolini usava a cartada que tinha à mão: "Olha, você vai barrar isso mesmo? Quem me deu aval para estar aqui foi seu chefe". Mais de 55% dos clientes usam a Lendico para levantar recursos e pagar dívidas mais caras - ou seja, encontram no sistema taxas mais baratas do que aquelas com que deparam no mercado. A análise é muito rigorosa. A empresa recebeu, até abril, mais de 270 mil pedidos de empréstimos. Para manter a promessa de inadimplência baixa (atualmente em 1,5%), vem aprovando cerca de um a cada 180 pedidos. A taxa de juros média hoje é de 3,4% ao mês, metade da média em alguns bancos grandes.

A Biva, a empresa da reunião no BC, tem foco mais fechado: atende aqueles que têm ou querem abrir um negócio próprio. "Se você é empreendedor, em vez de solicitar crédito em um banco, você pede a pessoas dispostas a investir em seu negócio", diz Vargas Neto. A startup identifica o pedinte de crédito por meio de CPF, pendências com a Receita Federal, endereço de IP da máquina de onde parte o pedido e o rastro de uso de internet banking e redes sociais. Um em cada 20 pedidos de crédito é atendido. A taxa de inadimplência é de 4,5%, não muito baixa, porque os clientes microempresários sofrem com a atual crise. O perfil típico de cliente é o empreendedor que não tem acesso ao crédito como pessoa jurídica e recorre a linhas de empréstimo para pessoa física, mais caras. "Estamos construindo um mercado com essa camada de empreendedores que não têm acesso ao crédito bancário", diz Vargas Neto. A Biva se inspirou em startups que funcionam em dezenas de países, como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, China e índia. A diferença é que a maior parte desses países permite que a transação ocorra sem passar por uma instituição financeira. No Brasil, alguma instituição financeira de crédito tem de assumir a responsabilidade pelas transações. No caso da Biva, a principal é a financeira Socinal, com sede no Rio de Janeiro. O modelo de empréstimos entre iguais já produziu até empresas bilionárias: a Lending Club, que opera nos Estados Unidos, alcançou em 2015 um valor de mercado estimado em US$ 8,5 bilhões.

Biva e Lendico fazem parte de um universo de startups apelidado de fintecs - empresinhas que unem finanças e tecnologia. Fazem parte desse universo desde aplicativos de organização financeira até novos sistemas de pagamento. No Brasil, por causa dos juros altos e da histórica dificuldade para poupar e investir, suspeita-se da existência de uma mina de ouro no meio de campo em setores específicos, entre quem tem dinheiro a oferecer (como investimento) e quem quer empréstimo. Uma pioneira no segmento é a Urbe.me, de Porto Alegre, do administrador Paulo Deitos e do arquiteto Lucas Obino. Trata-se de um site de financiamento coletivo para o setor imobiliário. A construtora apresenta o projeto, os interessados investem em conjunto. Uma construtora pequena paga, no sistema, taxas correspondentes a cerca da metade do que encontra nos bancos.

Vale a pena observar a novidade. Essas microempresas inovadoras estão entre aqueles poucos setores que sofrem com a crise, mas também se destacam por causa dela. Ainda por cima, ajudam a abrir rachaduras na muralha dos juros altos no Brasil.

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