Desequilíbrio global diminuiu, mas segue sendo foco de tensão

Autor(es): Alan Beattie e Alice Ross
Valor Econômico - 16/10/2012



Houve um período, entre 1839 e 1842, quando o império britânico podia resolver seus desequilíbrios comerciais enviando navios de guerra de sua Marinha Real ao rio das Pérolas e a Xangai para obrigar a China a aceitar a importação de ópio.
Já as "guerras cambiais" de 2010 perderam fôlego sem derramamento de sangue. Esses conflitos - cujos principais combatentes foram os EUA e a China, com o Brasil e alguns outros mercados emergentes também ativos - envolveram vigorosas acusações contra desvalorizações competitivas visando aumentar as exportações. Dois anos mais tarde, os desequilíbrios em conta corrente diminuíram e as tensões envolvendo as taxas de câmbio se dissiparam.
Ainda assim, em meio à ainda vacilante recuperação das economias desenvolvidas e à desaceleração do crescimento nas economias emergentes, essa détente pode revelar-se um armistício, em vez de paz permanente.
"O reequilíbrio não progrediu muito, e muitos dos ganhos são superficiais", diz Steven Dunaway, consultor econômico e ex-alto funcionário do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Os movimentos em conta corrente, especialmente na China, frequentemente não vieram acompanhados pelo tipo de reequilíbrio interno que provavelmente os tornariam duráveis. E tendo em vista a recente iniciativa do Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) de embarcar numa onda de política monetária superfrouxa, com sua terceira rodada de flexibilização quantitativa, estão ressurgindo as acusações de que os EUA estão debilitando o dólar para obter vantagens competitivas.
À primeira vista, o reequilíbrio progrediu bem, e o padrão de uma década de "financiamento pelo vendedor" - mediante o qual a cronicamente superavitária China e outras economias asiáticas passaram a emprestar dinheiro para os deficitários EUA poderem comprar suas exportações - está sendo rapidamente rompido. Em setembro de 2011, o FMI previu um superávit em conta corrente para a China equivalente a 5,2% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2011; o superávit ficou em apenas 2,8%.
O FMI, cujos pontos de vista sobre os desequilíbrios são examinados detidamente devido a seu papel central na tentativa de mediar as guerras cambiais, reduziu, neste ano, suas previsões para o superávit chinês em cinco anos de 7,8% para 4,3% do PIB. A propósito, isso é apenas um pouco superior ao nível de 4% que os EUA tentaram e, não conseguiram, fosse aceito como um limite de referência mundial em uma reunião rancorosa do Grupo dos 20 países mais importantes na Coreia do Sul em 2010.
Em sua mais recente (e detidamente acompanhada) avaliação mundial regular, William Cline e John Williamson, do Peterson Institute, um centro de estudos de Washington, dizem que as moedas estão mais próximas de valores justos do que em qualquer momento desde que estimativas começaram a ser computadas, em 2008. O desalinhamento médio mundial, ponderado pelo tamanho das economias, caiu de 8,4 pontos percentuais em 2009 para apenas 2,6 pontos percentuais agora.
Tendo as exportações dos EUA crescido bastante nos últimos dois anos, superando com folgas o crescimento da economia como um todo, até mesmo o calor da discussão política nos EUA sobre a questão se dissipou um pouco. Mitt Romney, o candidato republicano à Presidência, prometeu designar a China como manipuladora de sua moeda em seu primeiro dia no cargo, mas essa ação seria em grande parte simbólica e a legislação para punir Pequim por desalinhamentos cambiais está parada no Congresso americano.
Enquanto isso, o presidente Barack Obama vem apregoando o reequilíbrio já concretizado - particularmente a atração de empregos no setor de manufatura de volta para os EUA -, como parte de sua campanha. Lael Brainard, o mais alto funcionário do Tesouro dos EUA encarregado de economia internacional, disse em julho: "O câmbio está começando a fazer a diferença para nossos exportadores e nossos trabalhadores".
No entanto, muitos economistas alertam que todos esses ganhos são precários. Em parte, eles refletem simplesmente o fato de que os desequilíbrios em conta corrente geralmente caem quando as economias estão debilitadas, quando consumidores e empresas reduzem seu consumo de bens e serviços importados. Os EUA, por exemplo, vêm crescendo a uma taxa média anêmica pouco superior a 2% nos últimos dois anos, o suficiente para estabilizar o emprego, mas quase certamente deixando um grande hiato entre o PIB real e o potencial.
O FMI tenta corrigir suas previsões pelo estado do ciclo econômico. Mas, após um período de prolongado desaquecimento econômico mundial e excessivo endividamento do consumidor americano, se já é difícil descobrir qual é o PIB potencial, que dirá quanto tempo os EUA levarão para retomá-lo. "Excepcionalmente, a demanda do consumidor não vem tirando a economia da recessão, e há um grande elemento cíclico nessa redução do déficit", diz Dunaway.
E a evolução dos acontecimentos em outras economias, particularmente na China, também não sugere um padrão novo e sustentável. O amplo consenso entre os formuladores de políticas internacionais sobre o que a China deveria fazer - e o objetivo declarado de Pequim, em seu atual plano quinquenal - é deixar de depender das exportações e estimular a demanda do consumidor chinês. Mas a queda do superávit em conta corrente da China deve-se mais a um aumento no investimento doméstico na esteira do programa de estímulo de 2008-09 - em particular, armazenando minérios importados e comprando maquinário para a produção. O consumo permanece extraordinariamente baixo, inferior a 40% do PIB.
Em abril, o FMI estimou que o aumento do investimento desempenhou um papel quase tão grande na redução do superávit em conta corrente chinês entre 2007 e 2011 quanto a valorização real do yuan nesse período. De fato, uma das características marcantes dos cerca de últimos 12 meses é que as moedas parecem ter ficado bem menos desalinhadas sem ter se deslocado muito. Segundo estimativas computadas neste ano pelo Peterson Institute, o yuan está desvalorizado em 7,7% frente ao dólar, em comparação com 28,5% 12 meses atrás. No entanto, o yuan valorizou-se apenas 3% contra a moeda americana durante esse período, e não muito mais em termos reais.
Uma vez que o surto de investimentos na China foi financiado por mais tomada de empréstimos por governos locais e empresas estatais já endividadas, isso tem dado munição aos pessimistas que alertam que o caminho escolhido por Pequim não é sustentável. "Todos os países que adotaram um modelo de crescimento baseado em investimentos acabaram tendo um problema de endividamento", diz Michael Pettis, professor na Universidade de Pequim.
Para muitos economistas - e para o governo americano - a China precisa valorizar ainda mais o yuan, bem como necessita uma reforma financeira para ajudar seus consumidores a comprar produtos importados. Mas, por ora, Pequim está mais preocupada com crescimento de curto prazo do que com um equilíbrio no longo prazo, e, na verdade, a pressão sobre o yuan é para baixo. A moeda praticamente não variou em relação ao dólar, neste ano, mas, como o crescimento das reservas cambiais chinesas também cessou, isso parece refletir fluxos de capital produzidos pelo mercado, em vez de manipulação oficial.
As saídas de capitais da China podem refletir incertezas políticas às vésperas da mudança - que acontece uma vez por década - na liderança em Pequim, marcada para o próximo mês. Mais preocupantemente, esses fluxos podem sugerir que as empresas nacionais estão levando seu dinheiro para outros países, porque elas têm uma visão de primeira mão sobre o enfraquecimento da economia. Grant Aldonas, diretor da firma de consultoria Split Rock International e assessor da campanha de Romney, diz: "A ironia é que podemos estar focados na moeda chinesa, enquanto está acontecendo um esvaziamento da bolha na economia chinesa".
Na realidade, o pior desfecho seria a redução dos déficits e superávits por meio de uma debilitante recessão mundial, algo semelhante a cortar fora o nariz de alguém para reequilibrar seu rosto. Mesmo que não se chegue a tanto, qualquer esfriamento adicional significativo nas grandes economias provavelmente produzirá tensões envolvendo desequilíbrios e moedas; um dos maiores riscos é que um esfriamento da demanda europeia freie as exportações asiáticas.
A recente decisão do Fed já provocou reclamações de alguns dos suspeitos habituais. Guido Mantega, ministro da Fazenda brasileiro e primeira importante autoridade econômica a usar a expressão "guerra cambial", em 2010, mais uma vez citou a ameaça das desvalorizações competitivas. As tensões em torno das taxas de câmbio ainda não retomaram a intensidade de dois anos atrás, mas algumas economias desenvolvidas, particularmente aquelas vistas como refúgios seguros, estão sendo atraídas para a briga.
Além de ação determinada da Suíça para impedir uma valorização de seu franco, o Banco do Japão reagiu à ação do Fed intensificando seu próprio programa de flexibilização monetária, após o enfraquecimento do dólar em relação ao iene. Os investidores estão em estado de alerta em face da eventualidade de novas ações de Tóquio, inclusive de intervenção cambial irrestrita, caso o iene continue a se fortalecer.
Da mesma forma, os bancos centrais da Austrália e da Suécia expressaram preocupação com a apreciação. Glenn Stevens, presidente do Banco Central da Austrália, disse no mês passado que o dólar australiano está sendo cada vez mais visto como um refúgio por parte dos investidores mundiais. No que alguns viram como um comentário capcioso, ele também manifestou-se surpreso por uma "instituição conservadora" como o Banco Nacional Suíço estar incorporando dólares australianos às suas reservas. O sueco Riksbank alertou em setembro que a coroa tinha apreciado com "inesperada rapidez" em meses recentes.
Enquanto isso, se os mercados emergentes forem envolvidos em massa nisso, eles poderão revelar-se ainda mais resistentes do que em 2010 a pressões das economias desenvolvidas no sentido de permitir valorizações cambiais e maiores déficits comerciais. David Lubin, do Citigroup, diz que as 24 maiores economias emergentes, excetuada a China, tiveram um déficit comercial líquido de US$ 134 bilhões nos primeiros seis meses de 2012, contra apenas US$ 38 bilhões no primeiro semestre de 2010.
"Da vez anterior, alguns mercados emergentes ficaram relativamente satisfeitos em ver suas moedas valorizar, ajudando-os a enfrentar pressões inflacionárias e porque as exportações eram saudáveis", diz ele. "Agora, muitos têm um problema externo e estão preocupados com seu agravamento caso permitam aumento no crescimento do crédito privado. Isso limitaria a capacidade das economias desenvolvidas de, por meio de exportações, abrir seu caminho até um estado mais reequilibrado, vendendo [seus produtos] para mercados emergentes ".
O problema fundamental continua sendo o de que ainda há muitos países mais interessados em exportar do que em consumir, e não há muita demanda de exportações para satisfazer a todos. Os EUA não desejam voltar a ser o consumidor de última instância. Na zona do euro, embora a posição externa como um todo tenha se mostrado praticamente equilibrada, Irlanda, Espanha, Grécia e Portugal, economias em dificuldades, necessitam, todas elas, desesperadamente, incrementar as exportações. Contudo, é improvável que os países do núcleo - especialmente a Alemanha, que tem se beneficiado das compras chinesas de maquinário nos últimos anos - queiram aceitar déficits para comprar de todos na periferia do euro, sugerindo que a zona do euro como um todo tentará ser uma exportadora líquida.
Enquanto isso, o volume do comércio mundial, tendo se recuperado de forma inteligente de seu colapso na esteira da quebra do Lehman Brothers, em 2008, diminuiu acentuadamente. A Organização Mundial do Comércio, recentemente baixou sua previsão para o comércio mundial de mercadorias, apontando para um crescimento de 2,5% neste ano, contra 5% no ano passado e 13,9% em 2010. O comércio geralmente acompanha - embora seja mais volátil do que - o PIB mundial, de modo que esse não é um bom sinal para o crescimento em curto prazo nem proveitoso para um reequilíbrio a médio prazo.
O estreitamento dos superávits e déficits mundiais em conta corrente nos últimos anos tem sido notável, e o período de calma que já proporcionou à diplomacia econômica é bem-vindo. Mas seria prematuro concluir que os problemas estruturais foram resolvidos e que um período sustentável de paz e prosperidade já começou. (Tradução de Sérgio Blum)

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