O Estado de S. Paulo - 19/11/2012
Na reunião com governadores, há pouca semanas, o ministro Guido Mantega apresentou proposta de unificação da alíquota interestadual do ICMS, que cairia dos atuais 12% e 7% para 4%, no prazo de oito anos. Trata-se de um passo na lenta caminhada para transformar a incidência desse imposto da origem para o destino, bem como de colocar um pouco de ordem na balbúrdia em que se transformou o ICMS, principalmente nas operações interestaduais. Num arroubo de otimismo, o ministro da Fazenda declarou ser possível costurar um acordo com os governadores ainda este ano, de modo apermitir que a transição rumo à mencionada alíquota tenha início em 2013.
Além disso, o Executivo estuda modificações importantes na legislação do Cofins e, no âmbito legislativo, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, com o apoio de especialistas, prepara projeto de emenda constitucional que dispõe sobre as bases do federalismo fiscal do Brasil. Ou seja, a reforma tributária, embora fatiada, voltou à ordem do dia.
Neste artigo, procuro mostrar que uma reforma que efetivamente alivie o contribuinte do peso dos tributos e que tome o sistema tributário brasileiro mais simples, mais justo e, principalmente, me- no s gerador de ineficiências na alocação dos recursos produtivos é sonho que dificilmente se tornará realidade. Vejamos por quê.
A carga tributária de países com renda per capita semelhante à nossa (US$ 11.800, de acordo com o FMI, usando a metodologia da paridade do poder de compra) é muito inferior à brasileira. Costa Rica, Malásia, México, Uruguai, Turquia e África do Sul, por exemplo, arrecadam de 15% a 25% como proporção do PIB, ante 34% no Brasil.
Numa amostra que coletei, com cerca de 100 países excluindo as nações que há pouco mais de duas décadas ainda não faziam parte do mundo capitalista, bem como pequenas economias africanas e asiáticas sem nenhuma expressão nota-se que a carga tributária é correlacionada positivamente com o nível de renda per capita e negativamente com seu grau de concentração. A razão para isso é praticamente intuitiva: é difícil arrecadar muito tributo quando a base de incidência é baixa e os indivíduos com capacidade contributiva representam parcela diminuta da população.
Na verdade, tal façanha só é possível com um sistema tributário como o brasileiro, em que o objetivo de maximizar a arrecadação desconsidera critérios como equidade, progressividade e eficiência econômica. Para arrecadar tanto, dados o nível e a concentração da renda, é necessário concentrar a carga nos impostos indiretos, ou seja, aqueles cobrados nas atividades de produção e comercialização, que se incorporam aos custos (e aos preços) dos bens e serviços. Nenhum país no mundo, exceto o Brasil, arrecada tanto com esse tipo de imposto. Nas economias desenvolvidas, com cargas tributárias próximas à nossa, a maior parcela da arrecadação é derivada dos impostos diretos (renda e patrimônio), mais justos e com menor potencial para distorcer a alocação eficiente dos recursos.
É essa ênfase excessiva nos impostos indiretos que toma o sistema tributário brasileiro regressivo. Como a parcela mais pesada dos tributos está incorporada no preço dos bens e serviços, pagarão mais, como proporção de sua renda, aqueles que têm menor taxa de poupança, ou seja, os mais pobres.
Anecessidade de arrecadar muito, sem a existência debase de incidência adequada, explica, por exemplo, a cobrança de alíquotas de ICMS desarrazoadas sobre energia e comunicação, que são insumos importantíssimos para o processo produtivo e serviços essenciais para o bem-estar dapopu- lação. Em alguns Estados, esse imposto corresponde a cerca de 40% do custo do serviço prestado!
Cobra-se muito imposto no Brasil porque é necessário custear um Estado mastodôntico. E o Estado brasileiro é grande por suas raízes históricas, como nos mostra Raymundo Faoro em Os Donos do Poder e porque, desde a redemocratização, se construiu implicitamente um pacto político favorável ao aumento das transferências públicas ao setor privado (via principalmente aposentadorias e programas sociais). Foi um movimento compreensível, dadas as precariedades sociais do País. Mas esse arranjo gera consequências econômicas indesejáveis, e a principal é o peso da carga tributária.
E não há indicações de que o pacto será rompido no curto prazo. Ao contrário, hoje nenhuma força política relevante o questiona. Além disso, não se pode esquecer a reconhecida ineficiência da máquina pública do País, ao mesmo tempo causa e conseqüência do inchaço do Estado.
Além da questão macroeconômica acima discutida, há a grave distorção gerada pela estadualização doICMS. Desconheço outro país do mundo onde um imposto sobre o valor agregado (IVA), como é oICMS, esteja sob a responsabilidade de entes federativos. Mesmo em países de sólida tradição federativa, como a Alemanha, a cobrança e as normas que regem o IVA são nacionais, cabendo aos Estados (ou províncias) parcela do valor arrecadado. É como funciona o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) no Brasil, também um tributo sobre o valor agregado. Se o ICMS fosse nacional, as discussões sobre cobrança na origem ou no destino, alíquotas interestaduais e guerra fiscal não fariam sentido. Mas, infelizmente, vejo obstáculos políticos gigantescos para a criação do IVA nacional.
Do que foi dito aqui, não se deve concluir que não haja espaço para melhoras no sistema tributário brasileiro, especialmente mediante legislação infraconstitucional, menos penosa para ser aprovada. Mas não é bom ser tão otimista quanto o ministro Mantega, para não sofrer frustração. Sem a efetiva redução do tamanho do Estado, uma verdadeira reforma tributária, que corrija pelo menos a maior parte dos problemas acima mencionados, continuará na categoria dos mitos.
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