Sobre Fenemês, Hyundais, Skodas e aviões

Autor(es): Chico Santos
Valor Econômico - 16/11/2012


No começo da década de 60 a BR-110, estrada até hoje cheia de precariedades que liga Areia Branca (RN) à BR-324 próximo a Salvador (BA), era passagem obrigatória para caminhões e ônibus que faziam a ligação do litoral e de grande parte do sertão do Nordeste com o Sudeste/Sul do país. Passava por dentro das cidadezinhas sertanejas e nos períodos de chuvas mais rigorosos os veículos pesados destruíam os esparsos trechos pavimentados com paralelepípedos dessas cidades. Nas estiagens, bem mais frequentes, a passagem incessante dos cargueiros fazia a diversão das crianças agrupadas no oitão sombreado de alguma casa de esquina para fugir do sol causticante.
A brincadeira era adivinhar pelo ronco do motor a marca do caminhão que apareceria na curva segundos depois. Tinha Mercedes, Ford, Chevrolet, GMC... importados ou produzidos pela recém-implantada indústria automobilística do país a partir da atração de fabricantes estrangeiros. O índice de acertos dependia de muitas variáveis, principalmente do ouvido, mas chegava a 100% quando o caminhão que se aproximava era o possante Fenemê, inconfundível com seu motor de baixa rotação anunciado pela batida forte e ritmada dos pistões. Produzido pela estatal Fábrica Nacional de Motores (FNM), em Duque de Caxias (RJ), com tecnologia italiana da Alfa Romeo, representava o sonho de uma indústria de veículos verdadeiramente nacional.
A FNM nasceu da mesma barganha com os Estados Unidos, na Segunda Guerra Mundial - dinheiro barato em troca do uso de bases aéreas no Nordeste-, que permitiu a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Seu destino era ser uma fábrica de motores para aviões, projeto que morreu, por obsolescência, no nascedouro. Como restou uma fábrica novinha em folha, surgiu a ideia de produzir veículos, caminhões inicialmente, primeiro com tecnologia da Isotta Fraschini (1949) e logo depois da Alfa Romeo (1950), ambas italianas.
FNM também produziu veículos Alfa Romeo
O Fenemê fez algum sucesso, despertou paixões, mas sucumbiu pouco a pouco ao domínio das grandes marcas internacionais e à falta de jogo de cintura do Estado para o ramo. A FNM também fez automóveis Alfa Romeo grandes e caros. Não cumpriu a tarefa de gestar uma indústria automobilística de capital nacional e foi vendida em 1968 à própria Alfa, sua permanente tutora tecnológica, e depois à Fiat, que enterrou definitivamente o projeto em 1985. Com ele morria o sonho do carro brasileiro, malgrado o esforço visionário, no campo privado, do paulista João Augusto do Amaral Gurgel e seus carros de fibra de vidro.
No mesmo ano em que a FNM era fechada aqui, desembarcava no rico mercado dos Estados Unidos a marca sul-coreana Hyundai que começara timidamente no fim da década de 40 copiando carros da Ford somente para o mercado doméstico do seu país. Por volta de 1975 a Hyundai lançou seu modelo de criação exclusivamente própria e agradeceu penhoradamente a colaboração da fábrica americana.
É a mesma Hyundai que, após muita enrolação, inaugura agora sua primeira fábrica no Brasil e anuncia de cara uma fila de espera de 24 mil unidades para comprar o seu HB20 produzido em Piracicaba (SP). Um carro desenhado totalmente para o mercado brasileiro... nos laboratórios de Seul. A Hyundai está certa e não tem nada a ver com o fato de nós brasileiros não termos compreendido, como sul-coreanos, japoneses, chineses, indianos, americanos, franceses, italianos, que a fabricação de carros é um fantástico polo de irradiação de conhecimento, tecnologia, dinheiro e bem-estar, desde que o centro de decisões esteja nas suas mãos.
A República Tcheca, Tchecoslováquia na maior parte do século 20 (quando formava um só país com a atual Eslováquia), sempre foi a joia tecnológica do bloco socialista europeu, que sucumbiu em 1991. Lá, não por acaso, os amigos Václav Klement e Václav Laurin fundaram em 1895 a L&K, que começou fazendo bicicletas, chegou a automóveis e enveredou por caminhões, máquinas agrícolas, motores para aviões, tudo que a FNM podia ser, para lembrar a música de Márcio e Lô Borges eternizada por Milton Nascimento. Em 1925 a marca L&K virou a consagrada Skoda, sucesso internacional que se rendeu em 1991 ao poderio da Volkswagen sem perder a alma tcheca.
Foi ali por volta de 1991 que o ex-presidente Fernando Collor, em momento de rara lucidez, chamou os carros brasileiros de "carroças" e deu a senha para a abertura do nosso mercado superprotegido, um mérito que não lhe pode ser negado. Os coreanos aproveitaram a brecha e chegaram, meio desacreditados. Hoje alimentam a matriz.
Porque os carros fabricados aqui, em geral, são projetos antigos e já amortizados, como reconheceu o presidente mundial da Renault / Nissan, o brasileiro Carlos Ghosn, em entrevista publicada pelo Valor no dia 7 de outubro do ano passado. A defasagem tecnológica está constantemente na ordem do dia do noticiário sobre os carros feitos ou somente vendidos nas bandas de cá, como mostram duas das principais reportagens do caderno especializado do jornal "O Globo" desta semana.
E mesmo a geração de uma cadeia produtiva densa, uma característica corretamente perseguida pelas autoridades brasileiras, já mostrou que pode ser bem efêmera. Na segunda metade dos anos 90, período pós-estabilização econômica, com a moeda doméstica valorizada pela âncora cambial anti-inflacionária favorecendo as importações, a indústria brasileira de autopeças praticamente desapareceu.
Por isso que às vezes a gente dá de sonhar com o ronco do motor do Fenemê nas tardes quentes de Jeremoabo, no sertão baiano. Sonhar com o que o velho caminhão forte e de cara feia poderia vir a ter sido. E dá medo de que a Embraer, essa joia quase solitária, também não aproveite para fazer pelo ar o que já nos escapou por terra.
Chico Santos é repórter no Rio. Excepcionalmente deixamos de publicar hoje a coluna da titular, Claudia Safatle

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