A privatização de Dilma

Revista Época - 20/08/2012
O pacote de concessões de estradas e ferrovias revela a distância entre ela e Lula

A arte de governar implica, vez por outra, admitir o óbvio. O aspecto mais relevante do pacote de R$ 133 bilhões de investimentos anunciado na semana passada pela presidente Dilma Rousseff consiste em reconhecer o papel fundamental da iniciativa privada no desenvolvimento do país. Num novo passo para afastar-se do populismo estatizante que foi a melodia dominante no segundo mandato do governo Luiz Inácio Lula da silva, Dilma convocou os empresários de dentro e fora do país a participar de um dos maiores programas de privatização em curso no mundo.

Numa iniciativa que pode produzir uma saudável mudança nas opções de transporte do Brasil, o governo pretende quase dobrar nossa estropiada malha ferroviária, acrescentando 10.000 quilômetros a um organismo adoentado que tem 12.000, metade da vizinha Argentina. Nas rodovias, a ideia é duplicar 7.000 quilômetros e acrescentar novos 5.000. A originalidade, considerando o receituário petista, é que o Planalto decidiu fazer exatamente aquilo que se faz no mundo todo - e que o próprio Brasil aprendia no governo de Fernando Henrique Cardoso e teve de relutantemente voltar a aplicar nos governos Lula (rodovias) e Dilma (aeroportos): privatizar. O governo quer, nos próximos 13 meses, licitar 21 concessões de rodovias e ferrovias.

Com sua iniciativa, Dilma deu mais uma contribuição para retirar o PT de sua pré-história ideológica.

Mais uma vez, fica claro como o debate sobre privatizações, tão presente na última campanha presidencial, era um exercício fútil e anacrônico. A questão real não é se, mas como privatizar. Nesse ponto, o projeto do governo levanta legítimos pontos de interrogação.

No caso das rodovias, a intenção é permitir que empresas privadas possam construir, explorar e manter as estradas. Foi adotado o modelo do menor preço de pedágio. Embora aparentemente benéfico para o consumidor, ele redunda em dificuldades maiores para as concessionárias manterem o nível de segurança e manutenção adequado nas estradas. É o que já se vê em algumas estradas privatizadas no governo Lula.

Nas ferrovias, a ideia é ainda mais controversa. As empresas privadas construirão e manterão os trilhos, mas o governo pretende explorar o transporte de cargas e passageiros, pagando uma espécie de aluguel às concessionárias. Dessa forma, acredita que poderá definir prioridades - como tarifas diferentes para diferentes usuários. O risco é o sistema abrir caminho à conhecida inconveniência produzida quando agentes do Estado podem optar entre oferecer facilidades e criar dificuldades: a corrupção.

Outro dado eloquente traduz a relutância com que o governo petista aceita o papel da iniciativa privada: 80% do financiamento para os novos projetos virão do BNDES, montante que, por si só, revela como as condições em que eles foram montados seriam insuficientes para atrair financiamento de capital privado na proporção desejável. Prevê-se, para as concessões, uma taxa de retorno de 6,5% no máximo - baixa demais para investidores em potencial.

O principal desafio é saber se o governo Dilma, com toda a sua história, será capaz de aceitar uma ideia elementar do capitalismo: que as empresas devem ganhar um bom dinheiro com a prestação de serviços à população - e que isso é bom para o país. Na prática, o Programa de Investimento de Logística (PIL), o nome oficial, exigirá cuidados especiais para não se tornar apenas "mais um plano".

A importância da Comissão da Verdade

Transformado na face visível da tortura contra presos políticos no porão militar, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra sofreu uma segunda derrota na Justiça. Em 2008, cinco membros da família Telles, todos presos sob responsabilidade de Ustra no DOI-Codi paulista, conseguiram que um juiz de primeira instância apontasse Ustra como responsável pelas torturas sofridas na prisão. Ele recorreu. Na semana passada, por 3 votos a 0, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a sentença. Em outro caso, em junho, Ustra foi condenado a pagar R$ 100 mil de indenização à irmã e à mulher de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto sob tortura na mesma dependência militar.

Apesar das vitórias de vítimas de tortura e seus familiares, especialistas em direitos humanos consideram difícil que o caso seja levado até o final. Isso porque o Supremo Tribunal Federal já resolveu, por maioria, que a Lei de Anistia impede que os responsáveis pela violência e pelos abusos ocorridos durante o regime militar sejam processados, julgados e punidos. Fruto do acordo entre civis e militares que permitiu uma transição democrática bem-sucedida, a Lei de Anistia só pode ser revogada por nova lei, aprovada pelo Congresso, decisão fora de cogitação no momento.

O conflito entre a legislação em vigor e o anseio das vítimas da tortura e de seus familiares por alguma forma de satisfação só aumenta a responsabilidade da Comissão da Verdade, constituída sem nenhum poder jurídico, mas com um papel fundamental para a história. A Comissão fará um trabalho inestimável se construir uma narrativa capaz de preencher as lacunas e omissões de um período que, embora tenha – felizmente - ficado para trás, deixou feridas que ainda não cicatrizaram completamente.

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