DOHA E A LIBERDADE NO TRÂNSITO DE MERCADORIAS

Autor: LEONARDO CORREIA LIMA MACEDO
Auditor-Fiscal da Receita Federal e facilitador da Organização Mundial de Aduanas (OMA) e da Organização Mundial de Comércio (OMC)

A facilitação comercial é um dos principais temas da Rodada de Doha de negociações multilaterais da Organização Mundial do Comércio (OMC). De acordo com o mandato, os membros devem esclarecer e aperfeiçoar aspectos referentes ao Artigo V (liberdade de trânsito), Artigo VIII (taxas e formalidades relacionadas à importação/exportação) e Artigo X (publicação e administração dos regulamentos de comércio) do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt 1994). O objetivo é melhorar a circulação, liberação e desembaraço de mercadorias.

Busca-se reduzir as formalidades burocráticas e aumentar a integração de sistemas entre as Aduanas e outros órgãos de controle para a agilização de procedimentos.
Sobre o assunto, já se acordou que cada país deve definir o ritmo e forma apropriada de implementação dos princípios da facilitação.

Democrática, a redação do Acordo acontece com a discussão das propostas dos países-membros. O texto definitivo será aprovado ao final da Rodada, em harmonia com os termos do compromisso único (single undertaking). Tal compromisso foi uma inovação da Rodada Uruguai e significa que enquanto não houver definição para algum dos temas negociados a Rodada permanece aberta.

No seio do novo Acordo merece destaque o Artigo V referente à liberdade de trânsito que abrange o regime de trânsito aduaneiro. As negociações buscam alcançar inclusive as mercadorias transportadas por infraestrutura fixa, tais como oleodutos e redes elétricas.

Trata-se, em suma, de garantir a livre circulação de mercadorias e simplificar os procedimentos aduaneiros de controle no território dos países-membros.

A lógica para a liberdade de trânsito é que os portos, aeroportos e fronteiras são unidades de passagem para as mercadorias provenientes e destinadas a terceiros países. Assim, o trânsito não deveria onerar a logística do comércio exterior.

Como obrigações fundamentais em torno do Artigo V estão: (i) o compromisso de não dificultar o transporte em trânsito impondo atrasos ou restrições desnecessárias ou impondo cobranças que não sejam razoáveis; e (ii) a adoção da cláusula de Tratamento Geral de Nação mais Favorecida.

Logo, no tratamento de tráfego em trânsito, nenhuma distinção deve ser feita com base na bandeira do navio, local de origem, pontos de partida ou entrada, saída ou destino, ou as circunstâncias relativas à propriedade dos bens. Toda e qualquer limitação imposta pelos membros à liberdade no trânsito de mercadorias por meio de seus territórios deve ser eliminada.

Entre as medidas em negociação para a melhoria da liberdade estão: a) a obrigatoriedade dos países aceitarem as rotas mais convenientes para o transporte de mercadorias no seu território; b) a utilização do conceito de Operador Econômico Autorizado (OEA) para os transitários; c) o uso intensivo da análise de risco; d) a eliminação das cobranças de direitos sobre o trânsito; e) a utilização de instrumentos internacionais para padronização de procedimentos e documentos; f) o envio e recebimento de informações antecipadas; e g) o estabelecimento de um sistema de garantias internacional.

Como regra geral, as exceções ao novo Acordo são para os casos previstos nos Artigos XX e XXI do Gatt 1994, que incluem aspectos relativos à saúde, meio ambiente e segurança.

Além de essencial para o comércio exterior global, a liberdade de trânsito é também um elemento-chave na integração de cadeias produtivas e na formação de blocos regionais. A título de exemplo, a União Europeia utiliza o Transporte Internacional Rodoviário (TIR) de forma intensiva e os trânsitos têm acompanhamento online por meio do mapa de movimento eletrônico. O mapa eletrônico mostra o número de cargas em trânsito em um determinado período e país.

O funcionamento adequado do trânsito ganha ainda mais importância para a sobrevivência e desenvolvimento de países sem acesso ao mar. Nessa categoria encontram-se um grande número de economias na África. Em nosso continente, o Paraguai, sem acesso marítimo, é o exemplo clássico de país isolado territorialmente (land locked) que depende da liberdade de trânsito para a integração internacional.

O Brasil com sua federação de 26 Estados e o Distrito Federal se assemelha a um bloco regional. Os controles fronteiriços interestaduais, o congestionamento portuário, a utilização intensiva do modal terrestre e o alto custo da armazenagem são elementos que reforçam a necessidade de aperfeiçoamento da liberdade de trânsito também na esfera interna. São Paulo, em especial os dois aeroportos e o porto de Santos, é a que mais movimenta cargas em trânsito aduaneiro no País. Estima-se que em 2009 o valor das mercadorias em trânsito tenha sido de 60 bilhões de reais e que por conta do regime foram aproximadamente 250 mil containers circulando nas rodovias. Em resumo, o aperfeiçoamento do regime é essencial para o fortalecimento da federação e a concretização do mercado comum brasileiro.

Seguindo os padrões internacionais de acordos regionais para esta finalidade, o Mercosul realiza o trânsito aduaneiro rodoviário com o Manifesto Internacional de Carga/Declaração de Trânsito Aduaneiro (MIC/DTA). Os países do bloco são signatários do Acordo sobre Transporte Internacional Terrestre (Atit), que define responsabilidades e infrações para a movimentação de mercadorias entre os países do continente.

Tanto do ponto de vista regional como internacional as controvérsias sobre o tema são frequentes. As consultas formalizadas por Brasil e Índia no Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC sobre as repetidas apreensões de medicamentos genéricos em trânsito na União Europeia são um sinal dos desafios que estão por vir sobre a liberdade no trânsito de mercadorias, a propriedade intelectual e a soberania.

Conclui-se que a liberdade no trânsito de mercadorias tem grande importância no comércio internacional e representa um dos principais temas em negociação na Rodada de Doha.