Nova identidade

Enviado por Míriam Leitão - 29.12.2011 | 14h01m
COLUNA NO GLOBO

Tudo o que uma pessoa não quer é ir num prédio que fica num shopping em Botafogo nestes dias do pós-Natal. O engarrafamento está pior do que antes. No meio de um dia de trabalho, o pesadelo é ainda maior. Pois foi o que tive que fazer para tirar a minha certificação digital exigida pela Receita Federal. Lá, constatei que o Estado no Brasil complica até quando quer simplificar.

Não pode ser o contador, nem qualquer pessoa com a procuração dada pelo interessado. É preciso ir pessoalmente. Indelegável, intransferível. Todo esse cuidado não é para proteger os dados do contribuinte. É para expôlos. O serviço de fazer a certificação é feito por empresas privadas. Em vez de ir a uma repartição do órgão, é preciso se dirigir a uma empresa que faça essa certificação, no meu caso, a Serasa Experian, uma das nove que fazem esse trabalho. Elas criam a identidade tributária digital que será o canal para a comunicação de cada contribuinte pessoa jurídica com o órgão governamental que arrecada tributos e fiscaliza a vida fiscal.

A Receita explicou que ela apenas utiliza os serviços, quem decidiu como fazer a certificação foi o Instituto de Tecnologia da Informação da Presidência da República.

— Vocês têm noção de que o que está acontecendo aqui é um absurdo? Uma empresa privada está fornecendo um serviço público que nós compulsoriamente temos que comprar — disse eu para as várias pessoas que na sala e ante-sala de espera disputavam as poucas cadeiras aguardando o chamado.

Ninguém demonstrou preocupação. Nem a contadora que chegou com seus vários clientes, nem o idoso que compareceu uma hora antes do horário marcado, nem o jovem com cara de estar começando a vida empresarial.

— Você veio no dia errado. Está marcada para o dia 29, às quatro da tarde — me disse a funcionária.

— Tenho aqui o registro de que é dia 27, às quatro.

Fui atendida. Os documentos estavam em ordem. Era uma pilha em que havia redundâncias assim: Carteira de Identidade, original e cópia; CPF, original e cópia. Um documento com foto 3/4. Argumentei que a Carteira de Identidade já tinha a foto, mas não teve jeito, tive que mostrar também o passaporte. Documentos do contrato social, NIT (Número de Identificação do Trabalhador), original e cópia, cartão do CNPJ e comprovante de residência. Chamada, fui em direção ao atendente:

— Você precisa criar três senhas.

Como todas as pessoas do mundo, estou soterrada por senhas: dos e-mails, das contas bancárias, dos cartões de crédito, dos sistemas de proteção da empresa, das redes wi-fi, dos sites de compras por internet, dos computadores pessoais, dos celulares.Três novas senhas não cabem mais no meu drive cerebral.

— Para que é a primeira?

— É a de revogação.

— Mas revogar o quê?

— O PIN. Se você errar três vezes o PIN, ele será bloqueado, por isso, precisa também criar a senha PUK que desbloqueia o PIN, mas se houver algum problema você terá que revogar a senha PIN, entendeu?

Entendi que eu começava me permitindo revogar o que eu ainda nem havia criado. Mas entendi principalmente que estava à beira de registrar senhas num computador de uma empresa que passariam a ser a chave da minha relação com o órgão público que tem o poder constitucional de zelar pelo meu sigilo fiscal. Agora, sabem minhas senhas: eu, a Receita e a Serasa.

— Estamos prestando um serviço à Receita Federal – me disse a atendente.

Não está na categoria de voluntariado. Custa R$ 465,00.

Quis saber por que eu tive que ir pessoalmente e não o contador ou alguém com minha procuração. Ela disse que em hipótese alguma poderia ser uma terceira pessoa, tinha que ser a controladora da pessoa jurídica.

— O Jorge Gerdau vai pessoalmente?

A atendente fez cara de que não sabia quem era o supracitado, então falei de uma figura mais popular no Rio.

— O Eike veio?

— Veio o representante dele.

Os grandes não têm que se chatear com uma coisa dessas. Não precisam se aborrecer com o trânsito de Botafogo, ir à torre do Rio Sul, na hora marcada, com documentos redundantes e abundantes, pendurar mais três senhas na cabeça e aceitar que uma empresa privada detenha uma informação que deveria ser exclusiva da Receita Federal. Recebi um cartão, um leitor de cartão, um kit com explicações de como funciona a minha nova identidade fiscal digital e o aviso de que ela vale até 2014. Tive sorte. Na saída vi gente bem atrapalhada.

Ainda bem que o prazo foi prorrogado. O kit que leio para entender o que foi mesmo que compulsoriamente fiz me informa que se eu esquecer as senhas terei que comprar outro certificado, porque, garante-se, não há cópias dessa informação.

Tenho que confiar que o sistema é seguro, porque entre outras coisas o certificado digital serve até para “assinar digitalmente documentos eletrônicos com validade jurídica”. Para completar: tudo isso é compatível apenas com sistemas operacionais da Microsoft que, como se sabe, são os mais vulneráveis a vírus e hackers.

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