Dogmas ao lixo

Brasil S.A - Antônio Machado
Correio Braziliense - 23/01/2013


Governo japonês tira independência do seu BC para monetizar dívidas e inflacionar a economia 
Precursor do modelo de crescimento inflado por bolha imobiliária e das dolorosas sequelas depois que ela estoura, o Japão só difere do pesadelo assemelhado vivido pelos EUA depois de 2007, por jamais ter saído da crise, intercalando recessão, estagnação e deflação há 23 anos, enquanto a economia americana balançou e parece se aprumar.
Nenhuma política econômica funcionou para o país, que há dois anos perdeu para a China, espécie de clone do modelo japonês, o posto de segunda maior economia do mundo, embora tenha sido, de 1953 a 1973, a de maior crescimento, com taxa anual de 9,4%. Como ato extremo, o novo primeiro-ministro, Shinto Abe — não tão novo, já que retorna ao governo que perdera na penúltima eleição —, derrubou uma das últimas cidadelas da ortodoxia monetária no mundo. Ele pretende inflacionar a economia como primeiro passo para exorcizar o mal da deflação.
Abe aprovou no Parlamento medidas que, na prática, terminam com a independência do Banco do Japão, status mantido praticamente apenas pelo Bundesbank alemão, e que dão ao seu gabinete poder para monetizar parte da dívida — a maior do mundo —, com a aquisição, a partir de janeiro de 2014 (e ninguém disse por que não desde já), de cerca de 13 trilhões de ienes ao mês (2,7% do PIB) de papéis da dívida.
Isso tudo em acréscimo a um pacote de estímulos fiscais de US$ 116 bilhões, embora não haja muita coisa a fazer num país destacado por ter construído pontes que não levam a lugar nenhum, tal o desespero para tirar a economia da estagnação dos últimos 23 anos. Só não há um problema social devido ao desemprego muito baixo, e muito disso porque a população diminui a cada ano e a sociedade rejeita abrir o país à imigração. A xenofobia é altamente enraizada no Japão.
A guia-mestra dessa política será a meta anual de inflação de 2%, o dobro do objetivo implícito atual, que não é atingido desde 1997, quando o índice bateu em 2% e o iene era cotado a 131,59 por dólar. Os preços desabaram nos últimos 15 anos, a taxa de juros básica foi posta no chão, a demanda interna não avançou, a taxa de poupança não caiu e as empresas, num país iminentemente exportador, perderam o atrativo do câmbio superdepreciado. Percebam que lembra a China.
Saída pela depreciação
E o Banco do Japão? Passou a se subordinar a um órgão que lembra o nosso Conselho Monetário do tempo da ditadura, já que é integrado por 11 membros, incluindo ministros, acadêmicos e empresários. Nem com a heterodoxia de Ben Bernanke, o Federal Reserve chegou a tanto.
A taxa cambial já reagiu, com a moeda distanciando-se de seu nível mais alto desde a Segunda Guerra, registrado em outubro de 2011, a 75,35 ienes por dólar. Ontem, estava em torno de 90. Para Ambrose Evans-Pritchard, do jornal inglês Telegraph, Abe deve perseguir uma linha de eventos saindo da estagnação para a monetização, visando forçar a desvalorização do iene até um patamar de estabilização.
O risco no percurso é que haja retaliação dos parceiros comerciais do Japão, como em 1985, quando o governo de Ronald Reagan obrigou o país a valorizar a moeda para reduzir o deficit comercial dos EUA.
A Europa já reclamou do laxismo do governo de Shinzo Abe. E hoje, além dos EUA, há outro parceiro duro na queda — a China, com a qual o Japão mantém laços comerciais estreitos, além de um conflito pela posse de ilhotas no mar territorial, que já gerou escaramuças entre as frotas de guerra de ambos. Não poderia haver pior momento para a manifestação de bravatas nacionalistas pelas duas maiores economias globais depois dos EUA, que ainda lambem as feridas da crise.
Os enigmas e as emoções
A história recente do Japão é didática e instigante. Como um país rico, sem pobreza, sem analfabetos, com reservas de quase US$ 1,3 trilhão — só abaixo das da China — e que já teve o maior número de formados em engenharia do mundo caiu na armadilha da estagnação?
No auge da febre, em dezembro de 1980, o índice Nikkei, da Bolsa de Tóquio, atingiu o recorde histórico de 38.915 pontos. Nunca mais foi recuperado. Hoje, gira em torno de 10.700 pontos, 72% abaixo. A vitamina da euforia foram o crédito farto, o juro barato e a moeda forte, ingredientes atualmente usados por muita gente boa para destravar o crescimento econômico. E a ruína, o registro pela banca dos ativos hipervalorizados por valor histórico, não de mercado.
O vento mudou e a casa ruiu. O governo encampou dividas privadas, como os EUA fizeram, mas, ao contrário do que se exigiu da banca, no Japão, a contabilidade bancária foi congelada. E, se tivesse sido diferente, pouco mudaria, já que a sociedade japonesa poupa mais do que consome. Se a sociedade chinesa tiver o mesmo comportamento, e é o que os dados sugerem, a Ásia ainda viverá fortes emoções.
Não há modelo universal
Os manuais da economia terão de ser reescritos depois que tudo o que se vem aprendendo nessa última versão da crise global. Dos EUA, vem a lição de que os mercados desregulados são perigosos. O Japão ensina que educação universalizada e de alta qualidade não resolve sozinha. A China mostra que há sucesso econômico sem democracia, e que crescimento sem apoio de um mercado interno forte traz o vírus que o enfraquece. O Brasil indica que a expansão movida a consumo, sem o investimento para abrir o caminho, leva a um beco sem saída.
A conclusão é que não há um modelo universal, apenas um punhado de ferramentas comuns, com o uso condicionado à situação de cada país. Até a demolição de fronteiras, caso da Europa, tem limitações, ao apontar que a vizinhança endinheirada convive mal aninhada aos mais frágeis, como a Grécia. A crise europeia é caso de solidariedade, não de casamento formal, como a da China é de estimulo ao consumo; a do Brasil, ao investimento; a do Japão... Bom, estamos aprendendo.