A estabilização incompleta

Autor(es): Samuel Pessoa | De São Paulo
Valor Econômico - 14/06/2011

Aumento da poupança doméstica propiciará a queda do juro, ajuste do câmbio e inflação sob controle.

A estabilização macroeconômica brasileira precisa ser completada. Apesar do enorme sucesso desde a alteração do padrão cambial, a introdução do sistema de metas de inflação e a produção de superávits fiscais suficientemente elevados, convivemos com juros anormalmente elevados. Recentemente, surgiu o problema da valorização do câmbio e, depois, o fantasma do monstro inflacionário passou a nos visitar. É impossível abordar estes temas - juros, câmbio e inflação - de forma isolada. Todos são sinais do mesmo fenômeno e, assim, resolvemos olhar o problema do ponto de vista dos juros elevados. Após tratar da anomalia dos juros domésticos, retornaremos aos demais temas.

Em uma economia fechada, a taxa de juros é formada pelo equilíbrio entre o investimento e a poupança. O investimento depende da rentabilidade prospectiva dos negócios. Sempre que o país melhora e os empresários acreditam que o futuro será melhor, o investimento se eleva.

A poupança depende de outras considerações. Isto é, os fatores que determinam a poupança são diversos dos que determinam o investimento.

A poupança depende de três fatores. Primeiro, o prêmio que o consumidor recebe para deixar de consumir hoje em função de um ganho no futuro. Este prêmio é medido pela taxa de juros real paga ao poupador. Segundo, a necessidade de guardar recursos para fazer frente à redução da capacidade laboral que acompanha o processo de envelhecimento. Terceiro, a necessidade de poupar para fazer frente a outros riscos a que o indivíduo está sujeito, tais como risco de doença, desemprego temporário, gastos inesperados com saúde, etc.

Evidentemente, a formação de poupança de uma sociedade depende fortemente da estrutura de incentivos subjacente. Sociedades que provêm estado de bem-estar social generoso com diversos mecanismos públicos de mitigação de riscos apresentarão menores valores para a poupança. Quando não há estado de bem-estar, a poupança tende a ser muito elevada. Este é o caso da China, que poupa 50% do Produto Interno Bruto (PIB). Assim, a baixa poupança brasileira é essencialmente fruto da estrutura de incentivos que a desestimula.

Desde a redemocratização a sociedade escolheu construir um forte estado de bem-estar, cuja consequência é a pesada carga tributária e diversos programas - aposentadoria rural, aposentadoria do setor privado por tempo de contribuição, aposentadoria integral do setor público, pensões por morte com regras de concessão generosas, SUS, seguro-desemprego, programa Bolsa Família etc. - que visam reduzir o risco dos indivíduos em uma economia de mercado.

De fato, quando se faz uma comparação internacional, o Brasil gasta com aposentadoria muito mais do que países com o mesmo estágio de desenvolvimento demográfico. A comparação do Brasil com uma amostra de 30 outras economias aponta que gastamos de duas a três vezes mais com previdência - inclui aposentadorias pagas pelo setor público aos funcionários do setor privado, aos funcionários públicos (civis e militares) e o pagamento de pensão por morte (setor público e privado) - do que economias com a mesma razão de dependência, isto é, a população com 65 anos ou mais como proporção da população em idade ativa.

O comportamento desviante do Brasil é mais acentuado quando verificamos uma das componentes do gasto do setor público com a previdência, a pensão por morte. O motivo do comportamento desviante do Brasil com este programa deve-se à total liberalidade legal para a concessão do benefício. Ele pode ser acumulado com a aposentadoria, não há exigência de diferença de idade máxima entre os cônjuges, exigência de existência de filhos em idade escolar etc. O Brasil é o único país da amostra de 31 países com este critério. Enquanto gastamos 3% do PIB com este programa, a média dos demais 30 países da amostra gasta pouco menos de 1%. Há, portanto, um excedente de gasto brasileiro de 2% do PIB o que permitiria dobrar o investimento consolidado (três esferas) do setor público!*

Nossa interpretação é que a baixa poupança no Brasil explica os elevados juros. A poupança é baixa em dois sentidos. Não somente o nível da poupança é baixo como a taxa de poupança não cresce quando a taxa de crescimento do produto eleva-se. Por exemplo, ao longo de todo o governo Lula, a taxa de investimento cresceu muito. As taxas saíram de aproximadamente 14% do PIB para algo perto de 19% no terceiro trimestre de 2008. Estes 5% do PIB de alta da taxa de investimento correspondeu a um aumento na absorção de poupança externa do mesmo montante: saímos de um superávit de transações correntes de pouco menos de 2,5% do PIB para um déficit ao redor de 2,5% do PIB! Isto é, a elevação do gasto autônomo do investimento não gerou a sua própria oferta. O princípio keynesiano da demanda agregada parece não funcionar no Brasil: o investimento não gera a sua própria poupança. Para que a inflação não aumentasse muito, a poupança externa teve que tapar o excesso da demanda sobre a oferta. No entanto, mesmo com o concurso da poupança externa ainda nos deparamos com taxa básica de juros muito elevada.

A manutenção das elevadas taxas básicas de juros mesmo em um contexto de risco país reduzido e de mobilidade internacional de capital suscita um questionamento de caráter fundamental. Por que a mobilidade internacional de capital não permite que haja a convergência da taxa de juros doméstica aos juros internacionais? Pensamos que dois motivos justificam a manutenção de juros extremamente elevados no atual contexto.

O primeiro motivo é a existência de um risco cambial. Para investidores estrangeiros avessos ao risco o fato de o real ser uma moeda para a qual não haja mercados internacionais líquidos e profundos faz com que exista risco de conversão. Este risco mede a possibilidade de no momento em que o investidor deseje retirar os recursos do país não encontre outro investidor na posição contrária, de sorte que a operação de troca de reais por dólares americanos ocorra com possibilidade de forte perda. É por este motivo que a cotação do câmbio no mercado futuro sistematicamente superestima a cotação do mercado à vista no futuro.

Quando não há o risco de conversão - como é o caso dos derivativos de câmbio negociados na BM&F - o investidor está disposto a fechar o contrato mesmo que a cotação do real no mercado futuro seja mais desvalorizada do que a cotação esperada no futuro para o mercado à vista. A diferença entre ambas é dada pelo risco cambial. Elevados valores para o risco cambial também explicam custos altos para o hedge. Assim, apesar de o risco país ser baixo, o risco cambial impede a convergência das taxas de juros.

A redução do risco cambial recoloca na agenda a questão da conversibilidade do real**. No entanto, em outro contexto. Não se trata de risco de jurisdição no sentido jurídico do termo. Isto é, o risco de reaver garantias e de não conseguir ou de ser muito caro processar um devedor inadimplente, dadas as vicissitudes do Judiciário brasileiro. Além de a evidência empírica ter rejeitado a proposição do risco de jurisdição, parece-nos que ele pode explicar os elevados spreads bancários, mas não os elevados níveis da taxa básica de juros. A questão parece bem mais singela. O Brasil é um país estruturalmente recebedor de capital visto que estruturalmente a poupança doméstica é baixa. Em larga medida, o interesse de boa parte dos proprietários de capitais aqui investidos dá-se em outra moeda. Se não houver mercados profundos e líquidos denominados em reais, haverá sempre o risco de a cotação ser muito desfavorável no momento que houver a necessidade de remissão de capital para fora. Certamente, há muito que a política econômica pode fazer para estimular a construção de um mercado de dívida denominada em reais. A Austrália, por exemplo, é fortemente especializada na produção de commodities, cuja moeda é internacional. Isto faz com que o país consiga financiar déficits de transações correntes na casa de 4,5% do PIB sistematicamente por mais de 40 anos a juros baixos. Parece-nos que esta foi a opção tomada pela população brasileira quando escolheu sistematicamente políticas que geram baixa poupança***.

O segundo motivo que tem impedido uma queda mais rápida dos juros no período recente é a política oficial de forte acumulação de reservas. Há sinais consistentes de que o resto do mundo estaria disposto a financiar o excesso de demanda doméstica e ainda cobrar um prêmio de risco bem menor. Ou seja, há sinais de que o Brasil sustentaria déficits de transações correntes na casa de 4% do PIB anualmente com juros relativamente baixos sem grandes problemas para a solvência internacional. Portanto, nosso entendimento é que se houvesse alteração na política de acumulação de reservas pelo Banco Central, que permitisse uma maior valorização do câmbio, haveria absorção de maiores níveis de poupança externa. O câmbio mais valorizado elevaria as importações, reduziria as exportações e elevaria a oferta doméstica de bens e serviços, contribuindo, assim, para reduzir o excesso de demanda por bens e serviços. A redução do excesso de demanda agregada diminuiria a pressão sobre a inflação, permitindo o equilíbrio do mercado doméstico de bens e serviços com juros menores.

Como afirmamos anteriormente, a política de acumulação de reservas, ao impedir a valorização adicional do câmbio e a consequente elevação do déficit de transações correntes, tem contribuído para manter a taxa de juros elevada. Do ponto de vista do equilíbrio no mercado de ativos, as operações de esterilização da acumulação de divisas feitas pelo Banco Central inundam o mercado doméstico de papéis. Consequentemente, os preços destes são reduzidos, pressionando as taxas de juros para cima.

Esta interpretação do fenômeno dos juros elevados no Brasil é corroborada por estimativas que fizemos a partir de trabalho de Pastore e colaboradores****. Dado o câmbio real observado, calculado a partir da evolução do câmbio nominal em reais deflacionado por uma cesta de moeda em que os pesos são proporcionais à participação de cada país no comércio internacional com o Brasil, é possível estimar o câmbio real de equilíbrio de longo prazo. Este tem como seus determinantes os termos de troca e o passivo externo líquido. A partir de maio de 2006, o câmbio real de equilíbrio situa-se abaixo do câmbio real observado. Segundo nossos cálculos, o câmbio corrente encontra-se artificialmente desvalorizado em 5%! Assim, estamos trabalhando com dois câmbios: o câmbio corrente que é o observado, e o câmbio real de equilíbrio. Por questões estruturais da economia brasileira, ambos estão valorizados. Voltaremos em seguida a este ponto. No entanto, o câmbio corrente está desvalorizado em relação ao de equilíbrio (ou, o que dá no mesmo, o de equilíbrio está valorizado ao corrente).

Como é possível que ao longo de tantos anos o câmbio real de equilíbrio esteja continuamente mais valorizado do que o câmbio real observado (isto é o câmbio real corrente)? Nossa resposta é que a política de contínua acumulação de reservas manteve o câmbio corrente permanentemente mais desvalorizado do que o câmbio de equilíbrio dado pelos fundamentos de mercado. Manter um preço fora do equilíbrio é como nadar em um rio contra a corrente. Temos que nadar continuamente para mantê-lo fora do equilíbrio. Se pararmos de nadar - no caso, se pararmos de acumular reservas -, o câmbio retorna ao seu valor de equilíbrio. É claro que, como afirmamos, um câmbio mais valorizado estimularia a entrada de poupança externa e, consequentemente, permitiria o equilíbrio da economia a uma taxa de juros mais baixa.

Recapitulando todo o argumento, os juros são elevados no Brasil hoje porque há excesso de demanda sobre oferta por bens e serviços. Este desequilíbrio interno no mercado de bens e serviços poderia ser mitigado se estivéssemos dispostos a elevar a absorção de bens do mercado externo. No entanto, como somente é possível absorver bens e serviços do mercado externo que sejam transacionáveis internacionalmente, esta absorção produzirá um excesso de demanda local pelos bens e serviços que não sejam transacionáveis internacionalmente (em geral, os serviços). O processo de absorção de poupança externa necessariamente encarece os bens não transacionáveis, isto é, valoriza o câmbio real. Assim, para impedir uma apreciação adicional do câmbio, a política cambial não permite que tal descompasso entre oferta e demanda seja suprido integralmente pela oferta externa.

Consequentemente, os juros internos têm que ser elevados para manter a economia mais "esfriada" do que estaria com juros menores e, portanto, o câmbio mais depreciado. A saída do BC do mercado de divisas permitiria elevar a absorção de poupança externa e equilibrar o mercado doméstico de bens e serviços com menor taxa de juros. O custo seria aceitarmos um câmbio ainda mais apreciado.

Voltando às questões estruturais, o câmbio no Brasil está valorizado por dois motivos. Primeiro, a baixa poupança que requer absorção de poupança externa para fechar o espaço entre o investimento e a poupança doméstica e, segundo, o fortíssimo ganho de termos de troca em função da valorização internacional das commodities que exportamos. Os juros mais elevados esfriam a economia e permitem um equilíbrio com câmbio corrente um pouco mais desvalorizado do que o de equilíbrio.

Há dois caminhos para reduzirmos os juros. Primeiro é rumar para uma maior conversibilidade da moeda, de sorte que o risco cambial se reduza, e revertermos a política de acumulação de reservas. As duas medidas permitirão que a capacidade de nossa economia absorver poupança externa seja muito maior de forma a ser possível equilibrar a demanda com oferta sem pressões inflacionárias e a uma taxa de juros menor. Este caminho tem o efeito colateral de valorizar ainda mais o câmbio e produzir forte redução do emprego na indústria de transformação.

O segundo caminho é alterarmos o contrato social da redemocratização, reduzindo fortemente o Estado de Bem-Estar Social de forma a elevarmos a poupança doméstica. A elevação da poupança doméstica permite encontrarmos um equilíbrio com juros mais baixos e câmbio mais desvalorizado e inflação sobre controle.

* Ver Rocha, Roberto de Rezende e Caetano, Marcelo Abi-Ramia (2008), "O sistema previdenciário brasileiro: uma avaliação de desempenho comparada," Texto para discussão 1331, Ipea, março, gráficos 1 e 3.

** Enfatizada por Arida, Persio (2003), "Ainda sobre a conversibilidade," Revista de Economia Política, 23(3), p. 135-142, Arida, Persio (2003), "Conversibilidade: o caso brasileiro," em Daniel Luiz Gleizer (editor) Aprimorando o mercado de câmbio brasileiro, p. 93-111, BMF Brasil e Arida, Persio, Bacha, Edmar L. e Lara-Resende, André (2005). "Credit, interest, and jurisdictional uncertainty: Conjectures on the case of Brazil", em Francesco Giavazzi, Ilan Goldfajn e Santiago Herrera (editores) Inflation Targeting, Debt, and the Brazilian Experience, 1999 to 2003, p. 265-293, MIT Press.

*** Para a internacionalização da moeda Australiana ver McCauley, Robert (2006), "Internationalising a currency: the case of the Australian dollar", BIS Quarterly Review, December, p. 41-54.

****Ver Pastore, Affonso Celso, Pinotti, Maria Cristina e Pagano, Terence de Almeida (2010), "Limites ao crescimento econômico", (www.acpastore.com/Imagens/Velloso2010.pdf, acesso em 19/04/2011).

Sócios da Tendência Consultoria Integradas. Samuel Pessoa é pesquisador associado do Ibre-FGV. Márcio Nakane é professor do Departamento de Economia da USP.

Este é o primeiro de uma série de artigos sobre a conjuntura econômica atual, com foco maior nos problemas do câmbio e da inflação, feitos por renomados economistas a pedido do "Valor". Amanhã publicaremos o artigo de Francisco Lopes.

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