Com caminho asfaltado, Brasil alcança Pacífico

O Globo - 31/07/2011

Após 11 anos, Transoceânica fica pronta, mas não realiza sonho de corredor de exportação para Ásia

Liana Melo*

LIMA, CUZCO e PUERTO MALDONADO. Foi preciso domar os caprichos da natureza para transformar em realidade o sonho de pavimentar o caminho do Brasil ao Oceano Pacífico. Mas, para tirar definitivamente do papel a Transoceânica - projeto que nasceu em 2000 -, faltava construir uma pequena ponte sobre o rio Madre de Dios, no Peru. Inaugurada, enfim, no último dia 15, a ponte se tornou um marco dessa complexa, singular e desafiadora rodovia, cujo megaprojeto binacional é assinado por um pool de empreiteiras brasileiras: Norberto Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão.

Pensada para ser um corredor de commodities, ainda não se sabe, contudo, se a rodovia vai realizar o sonho acalentado por anos pelo ex-presidente Lula. Talvez ela funcione mais como ferramenta de integração regional, incorporando áreas isoladas do Peru, e menos como uma estrada para escoar para a Ásia, via Pacífico, produtos do Centro-Oeste brasileiro, como carne, minério e soja. Isso porque a rodovia é estreita, sinuosa e remota, o que aumenta os gastos com combustível e manutenção dos caminhões.

- A integração física poderia ser também comercial, se fosse assinado acordo de livre comércio entre os dois países - avalia o diretor de Sustentabilidade da Odebrecht Peru, Delcy Machado Filho, comentando que o megassonho de um corredor de commodities talvez não se realize, mas o fato de o Brasil já ter acesso irrestrito ao Pacífico é, sem dúvida, mais uma porta que se abre aos itens made in Brazil.

Se a origem for Santos (SP), para se chegar ao Pacífico pela estrada é preciso percorrer 2,6 mil quilômetros até os portos peruanos de Ilo, Matarani e San Juan de Marcona, todos à beira do oceano.

A Odebrecht investiu US$1,25 bilhão para explorar por 25 anos o maior trecho da estrada, batizado de Interoceânica Sul. São 710 km de asfalto no pedaço que começa em Cuzco, passa por Puerto Maldonado, na região de Madre de Dios, e chega a Assis Brasil, no Acre. É nesse ponto, na fronteira entre os dois países, que foi preciso levantar a ponte Billinghurst sobre o rio Madre de Dios, que desemboca no Brasil com o nome de Madeira.

Ao custo de US$32 milhões, a enorme estrutura metálica da Billinghurst, de 722,9 metros de extensão e altura correspondente a um prédio de 25 andares, era o último elo que faltava para concluir um negócio que começou a ser discutido nos anos 2000, durante a Cúpula dos Presidentes da América do Sul.

Se a megafunção de corredor de commodities ainda é questionável, a integração regional entre Brasil e Peru já virou sinônimo de negócios. Mas o porto de Paranaguá, no Paraná, é que continua sendo, por enquanto, a alternativa para exportar à Ásia. Hoje, o comércio entre Brasil e Peru é da ordem de US$3 bilhões, com potencial de triplicar.

- Mas falta ainda melhorar os trâmites nas aduanas dos dois lados, para que o comércio bilateral fique mais ágil - diz o engenheiro Biaggio Serio Carollo, gerente da obra da Odebrecht em Puerto Maldonado.

Desde que a ponte foi inaugurada, carretas brasileiras, abarrotadas de milho do Mato Grosso, começaram a chegar a Puerto Maldonado. Comboios da Volkswagen estão cruzando a Transoceânica, vindos de Resende, no Rio de Janeiro, para abastecer o mercado de caminhões do Peru e Equador. Enquanto isso, o Peru já começou a exportar pedra para Rio Branco, no Acre.

O temor de José Luis Aguirre, governador de Madre de Dios, onde fica Puerto Maldonado, é que os moradores "vejam os carros passar na ponte, mas não o desenvolvimento econômico da cidade".

A Odebrecht investiu US$7 milhões para reduzir os impactos socioambientais da rodovia. Como a legislação ambiental no Peru é mais flexível que a do Brasil, os investimentos para mitigar os impactos foram bem menores, por exemplo, que o desembolsado em outras obras da própria Odebrecht.

- Na hidrelétrica de Santo Antonio, no Rio Madeira, os investimentos somaram US$100 milhões, o que correspondeu a 10% do valor da obra - compara Machado Filho.

Apesar de um PIB de US$137 bilhões em 2010, com previsão de crescimento de 6% para este ano, o Peru é sinônimo de potência mineral e alta concentração de renda. Só que o maior produtor mundial de ouro e cobre mantém sua riqueza concentrada no litoral, enquanto o interior vive isolado, pobre e tomado pelo garimpo ilegal. Cerca de 36% da população está abaixo da linha de pobreza.

A rodovia acabou evidenciando essa desigualdade e o isolamento de várias comunidades andinas. Mas também começou, por exemplo, a mudar para melhor a vida de Cirilo Mendez, de 67 anos. Seu rendimento mensal, que era de 2 mil soles, pulou para 14 mil soles depois que o trecho da Transoceânica, na Amazônia peruana, ficou pronto. Seu restaurante, o Parador Família Mendez, é um sucesso absoluto.

Nos Andes, a mudança de expectativa de vida também já é visível. As 60 famílias da Comunidade Cuyuni Ausangatec Hatun Pukaran passaram a conciliar o passado com o presente. Hábitos seculares, como a saudação a Pachamama - como os povos indígenas dos Andes chamam a mãe-terra - não foram abandonados. Outros, mais contemporâneos, foram incorporados. Todos agora têm celular. Os aparelhos foram adquiridos depois que o restaurante no Mirador Ausangatec Hatun Pukaran virou ponto turístico. Cerca de 340 turistas transitam por lá todos os meses.

Há 32 anos no Peru, a Odebrecht já acumulou no currículo 55 obras. O poder de integração regional e de incorporação de áreas isoladas do Peru fez com que a empreiteira ganhasse um bônus apetitoso do governo. A cada trecho de obra cumprido no prazo, a Odebrecht ganhava em troca um certificado, lastreado no governo. De posse destas notas promissórias, a empresa ia ao mercado internacional, onde conseguiu captar US$1 bilhão, praticamente o montante da obra.

(*) A repórter viajou a convite da Odebrecht

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