O ICMS e a cessão de bens em comodato

Autor(es): André Mendes Moreira
Valor Econômico - 19/01/2012

Por meio do ICMS, os Estados brasileiros tributam as vendas de mercadorias realizadas por comerciantes, industriais e produtores. O imposto, contudo, não incide sobre o empréstimo de bens a título de locação ou de comodato, o que é ponto pacífico entre fiscos e contribuintes. Afinal, o pressuposto para a cobrança do ICMS é a mudança da propriedade do bem por intermédio de um contrato de compra e venda. Tanto na locação como no comodato a propriedade da coisa permanece com o locador ou comodante, inviabilizando qualquer tentativa de exigência do ICMS nessas operações.

A cessão de bens em comodato, com o fito de viabilizar a atividade empresarial, ocorre em diversos segmentos da economia, como no caso dos fabricantes de bebidas (que emprestam refrigeradores, mesas e cadeiras aos bares e restaurantes que vendem seus produtos) e das montadoras de automóveis (que cedem equipamentos industriais aos seus fornecedores para viabilizar a produção de autopeças que, posteriormente, serão adquiridas pela própria montadora).

Sendo o ICMS um tributo não cumulativo, o contribuinte pode abater, do valor devido mensalmente em razão da venda de seus produtos, créditos correspondentes ao ICMS suportado na compra de bens utilizados em suas atividades. Exemplificando: se uma fabricante de bebidas adquire refrigeradores que serão emprestados aos seus pontos de venda, ela suporta, no preço de aquisição desses equipamentos, o valor do ICMS que foi pago pelo vendedor dos eletrodomésticos. Isso lhe conferirá o direito de crédito do imposto (o montante é inclusive informado na nota fiscal de aquisição), o que reduzirá o ICMS a pagar pela venda das bebidas fabricadas.

Contudo, e nesse ponto reside a controvérsia, os fiscos estaduais têm negado esse direito aos créditos de ICMS relativos aos bens cedidos em comodato, com arrimo em dois fundamentos. Primeiramente, como o bem é utilizado por outrem que não o comodante, este deixa - por não ser mais o possuidor - de fazer jus aos créditos referentes aos bens emprestados. Em segundo lugar, de acordo com a Constituição (artigo 155, parágrafo 2º, II, b), as saídas (vendas) de mercadorias nas quais se tem isenção ou não incidência do ICMS - caso do comodato, no entender do fisco - geram o dever de estorno dos créditos de ICMS por parte do vendedor. Ambas as assertivas fiscais, data venia, são improcedentes.

Os fundamentos para negar o direito aos créditos são improcedentes

Quanto ao primeiro argumento, impende notar que a cessão em comodato consiste em simples deslocamento físico do bem, sem mudança da sua propriedade. O comodato nada mais é que o "empréstimo gratuito de coisas não fungíveis" (artigo 579 do Código Civil). Assim, não havendo transferência da propriedade ao terceiro, a empresa cedente continua sendo titular do bem e, sendo este utilizado em prol de suas atividades empresariais (ainda que pelo seu parceiro comercial), não há qualquer regra impeditiva do creditamento. Tal interpretação é, inclusive, reforçada pela própria Lei Kandir, que prevê a cessação do crédito do ICMS sobre os bens do ativo imobilizado apenas quando da sua alienação (artigo 20, parágrafo 5º, V) e não pela sua simples cessão a outrem.

Em relação ao segundo ponto, entendemos que há um erro de premissa da fiscalização. Não se discute que a Constituição obriga o estorno dos créditos de ICMS quando a operação for abrigada por isenção ou não incidência. No entanto, para que seja exigido o aludido estorno é obrigatória a efetiva venda da mercadoria para terceiro. Sendo essa venda beneficiada por isenção (como algumas vendas para órgãos públicos estaduais) ou não incidência (como ocorre com as vendas de bens do ativo imobilizado da empresa, que não são considerados mercadorias pela legislação), o ICMS não incidirá na operação, mas o vendedor deverá estornar os respectivos créditos. No caso da cessão em comodato, como visto, não se tem operação de circulação jurídica, porquanto inexiste mudança de propriedade dos bens cedidos. Assim, a hipótese não se enquadra na regra que determina o estorno dos créditos relativos às saídas (vendas) isentas ou com não incidência do imposto. Se não há a saída referida pela Constituição, inexiste o pressuposto para aplicação da regra atinente às "saídas com isenção ou não incidência".

Em recurso especial julgado no ano de 2006 (nº 791.491/MG), o STJ acolheu a tese ora exposta, mantendo o direito ao crédito de ICMS de uma fabricante de sorvetes sobre refrigeradores emprestados aos seus pontos de venda. No mesmo sentido e no ano de 2009, o Conselho de Contribuintes de Minas Gerais assegurou a uma montadora de automóveis o direito ao creditamento do ICMS relativo a máquinas cedidas aos seus fornecedores de autopeças (acórdão nº 3.424/09/CE).

No entanto, apesar dos precedentes favoráveis existentes, a discussão tem recrudescido nos últimos tempos, havendo diversos casos pendentes de julgamento tanto em Conselhos Estaduais como no Judiciário. Por uma questão não apenas de coerência, mas também de respeito à ordem legal e constitucional, espera-se que essas novas lides tenham o mesmo desfecho dos casos acima referidos.

André Mendes Moreira é doutor em direito pela USP e sócio de Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados

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