RESTRIÇÕES PARAM MERCADO DE CÂMBIO NA ARGENTINA

ARGENTINA TENTA CONTER CORRIDA AO DÓLAR NO PAÍS
Autor(es): Por César Felício | De Buenos Aires
Valor Econômico - 01/11/2011

A paisagem urbana no microcentro de Buenos Aires estava alterada ontem. Sumiram as filas de argentinos interessados em comprar dólares em casas de câmbio e bancos. O mercado varejista de moedas ficou quase paralisado no primeiro dia de vigência da norma que obriga todas as transações cambiais a ter uma autorização on-line da AFIP, a Receita Federal do país. Uma força-tarefa de 4 mil policiais fez com que sumissem também os "coleros", os ambulantes que operam com dólares no mercado negro

O governo argentino demonstrou ontem disposição de levar adiante a queda de braço com o mercado financeiro para manter o dólar como uma âncora que atenue a inflação no país, mesmo à custa das reservas internacionais. Ontem, no primeiro dia em vigor das medidas que obrigaram a uma autorização online da Afip, o órgão local da receita, para todas as transações de compra e venda de moeda estrangeira, fontes do mercado relataram que o Banco Central novamente interveio para manter a cotação do dólar estável em 4,26 pesos. Desta vez, o desembolso foi de US$ 100 milhões.

Ao longo deste mês, a queda no nível das reservas foi constante e chegou a US$ 200 milhões num único dia, às vésperas da votação de domingo retrasado, que reelegeu a presidente Cristina Kirchner.

O atual nível de reservas é de cerca de US$ 47,5 bilhões, ante US$ 52 bilhões no momento pré-eleitoral. Na visão de economistas próximos ao governo, trata-se de um movimento puxado por um grupo restrito de investidores que estão apostando em uma desvalorização cambial mais acentuada. Em 2011, a moeda americana ganhou 7% sobre o peso (veja gráfico), percentual inferior até mesmo à desacreditada inflação oficial, de 9,3%. Medições não oficiais situam a inflação entre 20% e 25% este ano.

"A presidente resiste a uns poucos jogadores, quatro ou cinco, que representam 70% do movimento. É uma tentativa de mudar a política econômica, num momento em que haverá a troca de ministro da Economia, após a derrota eleitoral da oposição", disse o ex-diretor do Banco Central Arnaldo Bocco. O ministro da Economia, Amado Boudou, foi eleito vice-presidente, e Cristina deverá indicar um novo ministro até 10 de dezembro. Ontem, Boudou lançou mão até do twitter para dizer que especuladores estão fomentando um clima de "histeria coletiva".

O temor crescente entre investidores é que as reservas caiam a um nível que comprometa o pagamento de importações e de compromissos financeiros, o que levaria ao fim da politica de flutuação administrada. A hipótese mais analisada, então, é a do modelo de taxa múltipla de câmbio. Ele existiu em alguns momentos da história argentina e implica em taxas diferentes para exportações de matéria-prima, para importações de bens de capital, para aplicações financeiras e assim por diante.

"Tudo dependerá de como evoluir o montante das divisas. A fuga de capitais era zero até 2009 e deve fechar este ano em torno de US$ 23 bilhões. Ela surgiu depois que a presidente forçou a demissão do presidente do Banco Central em 2010 para usar as reservas para quitar de dívidas. Isto colocou uma dúvida sobre a solidez fiscal da Argentina, sobretudo quando aumentam o índice de preços e o gasto público e o dólar segue estável", opinou o consultor José Luis Espert, alinhado entre os economistas mais críticos ao atual governo.

Para Ricardo Delgado, dono da consultoria Analytica, a chance de mudança na política cambial é remota. "O atual nível de divisas equivale a cerca de 10% do PIB da Argentina. Podemos pensar em desdobramento do câmbio se desaparecer o superávit comercial e se as reservas caírem a um nível insustentável. Crises cambiais na Argentina aconteceram quando as reservas ficaram abaixo de 5% do PIB. E a balança comercial ainda está positiva", disse.

Tanto Delgado quanto Espert descartaram a adoção de uma centralização de câmbio, adotada na América Latina pela Venezuela.

Nos últimos dias, desde a reeleição, o governo baixou medidas para elevar a oferta de dólares, obrigando exportadores de minério e de petróleo e gás a trazer para o mercado doméstico os recursos conseguidos no exterior e forçando seguradoras a repatriar aplicações. Espera-se que, a partir de janeiro, a liquidação das exportações alivie a situação. "Os dois primeiros trimestres do ano tradicionalmente representam um maior afluxo de recursos", disse Delgado.

O dólar passou a fazer parte da vida cotidiana do argentino desde 4 de junho de 1975, data em que ocorreu o "rodrigazo", um plano econômico do então ministro da Fazenda Celestino Rodrigo, do governo de Isabel Perón. Naquela ocasião, uma megadesvalorização produziu uma hiperinflação e fez com que o dólar passasse a ser a principal reserva de capital no país. Ditaduras militares e trocas de moeda não alteraram esta situação.

"A Argentina possui hoje a maior quantidade de dólares em circulação na economia depois dos Estados Unidos", comentou Delgado. "É provável que haja pelo menos US$ 60 bilhões entesourados em espécie por poupadores na Argentina", afirmou Bocco.

O crescimento da inflação - cujo índice oficial é manipulado desde 2007 - incentivou a procura por dólares, já que as aplicações financeiras deixaram de oferecer taxas de juros atraentes para captar recursos que não são destinados ao consumo. As taxas privadas, como a Badlar, remuneram o capital a 14% a 20% ao ano, abaixo das estimativas não oficiais da inflação. A valorização imobiliária também impulsiona a procura por dólares. Na Argentina, é permitida a compra e venda de imóveis em moeda estrangeira.

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