A briga no comércio exterior

O mais novo instrumento contra importações desleais do Brasil é motivo de polêmica nas discussões mundiais de comércio.

O mais novo instrumento contra importações desleais no país, baixado pelo governo em agosto, é motivo de polêmica e indefinição nas discussões internacionais de comércio, segundo detalha artigo do diplomata Felipe Hess, no último número da Revista Brasileira de Comércio Exterior, que começará a circular nesta semana. A chamada Lei da Circunvenção, criada para reprimir importações desleais, trata de um tema ainda sem regulamentação internacional e "altamente questionável" entre os dispositivos do Acordo Antidumping da Organização Mundial do Comércio (OMC), alerta Hess.

A RBCE dedica boa parte da edição a outro tema fundamental, o financiamento das exportações, traz queixas do setor privado quanto à insuficiência dos mecanismos existentes e uma entrevista do vice-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Armando Mariante, otimista em relação à criação do Eximbrasil, o novo banco de fomento ao comércio exterior, ainda motivo de debate surdo nos bastidores do governo. O artigo de Hess, mais técnico, detalha um dos aspectos do debate crescente no Brasil por maiores barreiras contra importações, especialmente provenientes de países asiáticos.

A chamada Lei da Circunvenção foi criada para atacar um fenômeno já constatado desde a década de 80: regras contra dumping (venda abaixo do preço normal) são contornadas por exportadores desleais por meio de artifícios, como o mascaramento da verdadeira origem das exportações, usando terceiros países como intermediários no envio das mercadorias. É o que, aparentemente, vem ocorrendo com calçados: após a adição de tarifas punitivas antidumping contra calçados chineses, explodiram as vendas de calçados da Malásia e de Taiwan ao Brasil.

O tema, como lembra Felipe Hess, faz parte das discussões internacionais de comércio desde a rodada Uruguai, na virada da década de 80 para a de 90. Não gerou acordo, até por interesse dos Estados Unidos em manter maior liberdade de ação para aplicar suas próprias regras contra concorrentes considerados desleais. Os europeus também aplicam, desde essa época, medidas anticircunvenção, que só agora foram regulamentadas para entrar no arsenal brasileiro contra importações.

Uma das dificuldades apontadas pelo especialista na aplicação de medidas anticircunvenção é que elas envolvem o uso das chamadas regras de origem, usadas em outros aspectos das negociações comerciais, como na aplicação de vantagens (preferências) a importações de parceiros em acordos de comércio. Nos acordos antidumping, não há referências detalhadas sobre como tratar de regras de origem, e isso provoca boa parte das dúvidas em relação à legitimidade dos mecanismos anticircunvenção. Há quem defenda que esses mecanismos só podem ser aplicados após nova investigação, sobre preços no país de exportação e os danos aos concorrentes nacionais (pelas vendas de calçados de Taiwan, por exemplo) - isso tornaria a novidade pouco diferente de um novo e sempre demorado processo antidumping.

Pelo relato do diplomata, dá para notar que as regras recém-criadas no Brasil têm menor dose de arbitrariedade que as americanas ou europeias. Na linha do que se tentou, sem sucesso, estabelecer nas negociações multilaterais de comércio, as normas aprovadas recentemente pela Câmara de Comércio Exterior (Camex) são bem mais restritivas, e fixam limites para que se considere uma importação como alvo das medidas anticircunvenção. Não serão sujeitos à barreira, por exemplo, produtos com menos de 60% de componentes provenientes de país sujeito a medidas de defesa comercial (como o antidumping) ou com mais de 25% de valor agregado fora do país punido com essas medidas.

Os cuidados tomados pelo governo na definição do novo instrumento contra importações desleais mostra que os mecanismos de defesa comercial continuam vistos no Brasil como ferramenta contra aberrações - e não, como parece ser o caso em alguns países, artifício para fomentar a produção nacional. As queixas das indústrias brasileiras incomodadas com a perda de competitividade em relação aos estrangeiros serão, portanto, dificilmente atendidas integralmente com essas medidas. É preciso fomentar a competitividade da produção no Brasil, e, nesse ponto, tanto empresas quanto o governo tem um conhecido dever de casa a fazer.

Amanhã e quarta-feira, em Porto Alegre, com a realização do Encomex/Mercosul, encontro de comércio exterior, alguns dos principais especialistas no tema discutirão estas e outras questões que preocupam os exportadores brasileiros e do continente. Do financiamento para exportações às negociações com a União Europeia, praticamente todos os temas importantes estarão em debate. Inclusive a concorrência da China, que não aparece no programa oficial, mas está na cabeça de todos os participantes.

Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras

E-mail: sergio.leo@valor.com.br

Sergio Leo
30/08/2010
Fonte: Valor Econômico