Basileia 3: tirando o bode da sala?

A crise deixou os reguladores financeiros em uma situação delicada. Seu papel é evitar que os bancos corram riscos excessivos, ameaçando a saúde do sistema financeiro, objetivo que a crise mostrou não ter sido alcançado com os atuais modelos regulatórios. Essa constatação desencadeou um frenesi reformista, focado em evitar uma repetição da crise, até como satisfação aos contribuintes, que arcaram com a conta dos excessos, e duplamente: por meio dos impostos mais altos que serão a contrapartida à escalada da dívida pública e da perda de empregos trazida pela queda do nível de atividade.

O problema com as iniciativas isoladas de reforma é o risco de que os bancos em uma jurisdição transfiram suas atividades para locais com regras mais benignas. Reduzir esse risco é a função do Acordo de Basileia, para o qual se discute uma terceira versão, incorporando as lições da crise. Em dezembro o Comitê da Basileia para Supervisão Bancária publicou, para comentários, um primeiro rascunho do novo Acordo. Em 26 de julho o Comitê divulgou uma nova versão do documento, já com as sugestões recebidas. Essa confirma a máxima de que o diabo está nos detalhes; neste caso, nos prazos e parâmetros quantitativos das novas medidas.

O chamado Basileia 3 está calcado em três lições da crise: que nem todo capital dos bancos é igualmente bom para cobrir prejuízos e garantir a sua solvência; que as versões anteriores do Acordo davam atenção demais ao risco de crédito e de menos ao de perdas com as posições de tesouraria, em especial subestimando a correlação entre os preços de ativos; e que um sistema bancário com baixo risco de solvência pode entrar em colapso se for insuficientemente líquido.

Basileia 3 redefine as exigências de capital mínimo dos bancos, o chamado Índice de Basileia. O foco passa a ser no capital de nível 1, que passa a consistir quase que só de capital acionário tangível. Além disso, são dadas novas ponderações de risco a alguns tipos de ativo, notadamente às operações de tesouraria e interfinanceiras. As principais mudanças na versão recém-publicada referem-se à contabilização no capital mínimo de participações minoritárias, de ativos tributários com diferimento temporário e do valor de receitas com serviços de hipotecas (pouco relevante no Brasil).

O Comitê fixou o piso desse novo Índice de Basileia em 3% e, o que deu grande alívio aos bancos, adiou sua implementação para 1º de janeiro de 2018, quando também deve entrar em vigor um teto global de alavancagem (isto é, sem ponderação pelo risco de cada ativo), ainda a ser definido. A nova proposta também traz uma métrica mais favorável dos ativos dos bancos, notadamente para os derivativos. Por fim, ratifica a ideia de criar novo tipo de capital, constituído de dívidas contingentemente conversíveis em ações, a critério do regulador, e de trabalhar com um componente de capital anti-cíclico, mas os detalhes dessas medidas não foram definidos.

Basileia 3 também exige que os bancos mantenham níveis mínimos de liquidez, como definido pelo Índice de Cobertura de Liquidez, que fixa que o banco deve manter um piso de liquidez para poder cumprir seus compromissos no período de 30 dias em uma situação de estresse, e pelo Índice de Financiamento Líquido Estável, que requer que o financiamento de longo prazo seja maior ou igual aos ativos de longo prazo.

O elemento crítico neste caso é o peso dado a cada tipo de ativo e fonte de financiamento (equivalentes aos usados no cálculo do Índice de Basileia, mas sob outra ótica). A nova versão do Acordo é mais benigna nos dois lados (por exemplo, reduzindo o peso das hipotecas e aumentando o de certos tipos de depósitos), diminuindo o ajuste a ser feito pelos bancos, além de adiar parcialmente sua implementação para 2018.

Ainda se podem observar mudanças nos valores de alguns indicadores e ainda há medidas a serem mais bem estruturadas, mas o resultado final do Basileia 3 será um sistema bancário menos rentável e em que atividades mais arriscadas migrarão para instituições como os fundos de hedge. A extensão dessa mudança dependerá de como os bancos serão capazes de mitigar o impacto das novas regulações e de quão rigorosas estas serão ao final do processo.

A nova versão do Acordo atenuou várias medidas a que o sistema se opunha. Os mais cínicos verão na dureza da proposta de dezembro, e no elevado custo que ela imporia aos bancos, o proverbial bode, cuja retirada aumenta o apoio à nova proposta. A realidade, porém, é que aquela era inviável no prazo colocado e nas condições atuais. Nos próximos anos os bancos já passarão por um estresse elevado, dado o volume de dívidas que terão de rolar e a necessidade de elevar o seu capital. Isso estará na cabeça dos reguladores, junto com a meta de evitar que uma rápida desalavancagem dos bancos impeça a retomada do crescimento. No final, o Basileia 3 será um compromisso entre impor regras mais duras e lidar com os desafios colocados pelo difícil quadro econômico dos próximos anos.

Armando Castelar Pinheiro é professor do Instituto de Economia da UFRJ. Escreve mensalmente às sextas- feiras.

Armando Castelar Pinheiro
06/08/2010
Fonte: Valor Econômico