"O Mercosul ainda vale a pena"

Valor Econômico - 25/03/2011

Poucos funcionários públicos acompanharam tanto a infância e a adolescência do Mercosul quanto o embaixador José Botafogo Gonçalves. Aos 76 anos, ele agora preside o conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Botafogo ajudou, nos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a construir o Mercosul. No primeiro, foi ministro da Indústria, Comércio e Turismo. Depois, representante especial para assuntos do bloco. Entre 2002 e 2004, nomeado por FHC e mantido por Lula, foi embaixador do Brasil em Buenos Aires. Esteve nas duras negociações comerciais entre os dois sócios, nos anos 90, e viu de perto a crise econômico que assolou a Argentina.

Valor: Quais foram as principais diferenças no modo de tratar o Mercosul entre os governos de FHC e de Lula?

Botafogo: O presidente Lula teve um discurso mais integracionista do que o governo anterior, no qual o presidente Fernando Henrique era um entusiasta da integração, mas não os ministros da área econômica. A prática do governo Lula, no entanto, funcionou no sentido diametralmente oposto. Foram estabelecidas boas relações bilaterais, mas não fortalecendo o Mercosul. Dou um exemplo: quando surgiu a disputa envolvendo as "papeleras" uruguaias, o Uruguai pediu que o assunto fosse considerado no âmbito do Mercosul, e tinha toda a razão. Para isso temos um mecanismo de solução de controvérsias. Só que, para não contrariar a Argentina, o governo brasileiro não aceitou e tirou o corpo fora. Isso enfraqueceu irremediavelmente o Mercosul, que ficou parado em termos de instituições.

Valor: Mas o governo Lula não conseguiu, de certa forma, amainar as críticas dos países vizinhos, como o Paraguai?

Botafogo: O presidente Lula procurou ter boas relações com os vizinhos, mas nenhuma delas em um contexto de reforço institucional do Mercosul. Temos uma situação paradoxal: ele falava muito em generosidade com os vizinhos, mas o Mercosul saiu fragilizado, na prática. A visão de Fernando Henrique era mais pragmática, pegou um contexto macroeconômico conturbado, mas avançou na institucionalidade do Mercosul.

Valor: O Mercosul hoje ficou irrelevante para as ambições do Brasil?

Botafogo: Continua tão válida quanto no passado a ideia de que os quatro países juntos valem mais, nas negociações internacionais, do que cada um separadamente. E isso não é incompatível com o ganho de importância do Brasil em relação aos seus vizinhos. Mesmo a Alemanha, sendo incomparavelmente maior do que Luxemburgo ou Portugal, sabe que suas posições valem mais quando são transmitidas com o selo da União Europeia. A diferença entre nós, no Mercosul, aumentou muito. O Brasil continuou progredindo, enquanto a Argentina está em um processo de autoencolhimento. Mas isso não é culpa do Mercosul. Temos frequentemente uma atitude equivocada e preconceituosa, com inspirações coloniais, de que só importa vender para países distantes.

Valor: Fora os constantes problemas comerciais com a Argentina, o Mercosul vale a pena?

Botafogo: Não tenho a menor dúvida de que sim. Nos anos 90, havia pedidos insistentes, no Brasil, de abandonar o livre comércio e impor restrições à Argentina, porque tínhamos um forte déficit, devido principalmente às importações de trigo e de petróleo. O erro que nós quase cometemos, agora é a Argentina quem comete. Esse problema não está solucionado porque a indústria argentina está muito fragilizada, por causa de políticas macroeconômicas equivocadas. A princípio, o Brasil não fez mal em tolerar essas restrições. Mesmo nos setores em que há barreiras protecionistas, estamos vendendo muito mais do que no passado. A Argentina comete um erro em proteger dessa maneira a sua indústria porque, assim, contribui para enfraquecê-la em vez de aumentar a competitividade. Aos poucos, ela acabará tendo que se conformar em atender somente o próprio mercado argentino, abrindo mão de ter um papel de exportadora mundial. O país está se encolhendo no campo do comércio exterior. É um tiro que sai pela culatra.

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