Viúvas da Alca erram o alvo

Sergio Leo
Valor Econômico - 28/03/2011

A visita de Barack Obama ao Brasil teve um efeito sobrenatural entre alguns analistas da política externa brasileira: ressuscitou a discussão sobre a Área de Livre Comércio das Américas, Alca, a fracassada tentativa de criar um bloco comercial entre países dos três subcontinentes americanos. Foi uma oportunidade perdida, acusam esses analistas, ao apontar o fiasco das negociações como demonstração do sentimento antiamericano que teria movido o governo anterior. É uma análise tão equivocada quanto perigosa, porque desvia as atenções sobre as verdadeiras causas do mau desempenho do comércio com os Estados Unidos.

As dificuldades para encontrar argumentos coerentes na defesa da Alca como oportunidade perdida, levam defensores da tese até a apontar os exemplos do Chile e do Peru como demonstração do "erro" brasileiro. Enquanto o Brasil, de 2003 a 2010, aumentou em 35% suas vendas aos Estados Unidos, as exportações do Chile aos Estados Unidos cresceram quase 90% e as do Peru, mais de 110%. Impressionantes, os números refletem a pauta de exportações dos três países. Mais do que o poder mágico dos acordos de livre comércio, foram as características dessa pauta que orientaram o aumento das vendas aos americanos.

Brasil tem nos EUA um grande comprador de manufaturados

Segundo dados do U.S. Census Bureau, o Chile, em 2002, concentrava 40% de suas vendas aos Estados Unidos em apenas dois tipos de produtos: frutas e cobre, que agora somam 52% das vendas totais. É indício de concentração da pauta de exportações chilena, e não da saudável diversificação esperada com o acordo de livre comércio assinado em 2004 e posto em vigor anos depois.

As vendas de frutas e cobre, apenas, subiram quase 200% entre 2002 e 2010. Em termos absolutos, o resultado equivale a 70% do notável crescimento das vendas do Chile aos Estados Unidos. São ridículos, da casa de dezenas de milhares de dólares ou de quase US$ 100 mil os aumentos na venda de outros produtos.

No Peru, a pauta de exportações é mais desconcentrada, mas os produtos primários como petróleo, minerais (especialmente ouro) e frutas, principalmente azeitonas, somam 77% do total. O país tem recorrentes déficits no comércio com os americanos desde 2008 (assim como o Chile) e suas vendas de US$ 5 bilhões aos EUA cresceram principalmente pelo aumento no volume e preços de petróleo, ouro e, ah, sim, produtos industriais têxteis de casa, mesa e banho (beneficiados por regimes especiais de importação anteriores ao tratado de livre comércio).

Os peruanos têm até indicadores interessantes sobre manufaturados: suas vendas de "outras máquinas industriais" subiram 138%, de US$ 1,1 milhão para US$ 3,2 milhões. O Brasil, sem a Alca, teve de se contentar com aumento de apenas 36%. De US$ 154 milhões para US$ 209 milhões. Aumento percentual pequeno, mas responsável por vendas 1.400% superiores à dos peruanos beneficiados pelo livre comércio, um número que evidencia como podem ser enganosas as comparações desse tipo.

Uma análise pouco ideologizada das exportações dos três países - e de outros que aumentaram as vendas aos Estados Unidos a partir de acordos de livre comércio - mostra que a maioria foi beneficiada pelo aumento dos preços de commodities ou passou a encontrar mais facilidade de vender produtos manufaturados de baixo valor agregado, como têxteis (cujas vendas, aliás, caíram nesses anos recessivos, na relação Peru-Estados Unidos).

Já o Brasil tem, nos Estados Unidos, um de seus maiores compradores de manufaturados, especialmente aviões, motores, sapatos e móveis - esses últimos afetados severamente nos últimos anos pela concorrência chinesa. São o tipo do produto que mais pesadamente sofre o efeito de fatores macroeconômicos como a brutal valorização do câmbio do real em relação ao dólar, que ultrapassou 36% entre julho de 2004 - quando a grama já começava a brotar no túmulo da Alca - e a sexta-feira passada. Em 2004, a tarifa média nos Estados Unidos para produtos industriais era de 4%, dificilmente o maior obstáculo a remover no esforço de exportação aos americanos.

São fatores como o câmbio, a inacreditável tributação sobre exportações, os juros altos e a logística deficiente - além da falta de apetite das empresas brasileiras - as maiores barreiras para as vendas do Brasil aos Estados Unidos. Não são alvo dos acordos de livre comércio, e é sobre eles que se deveriam debruçar os que pranteiam a Alca falecida.

Já no governo Fernando Henrique Cardoso, quando o Brasil assumiu a co-presidência das negociações, era consenso na diplomacia brasileira que os termos desejados pelos Estados Unidos, adotados nos acordos com Chile, Peru, México e companhia, não serviam aos interesses do país. O que o governo seguinte, de Luiz Inácio Lula da Silva fez, com base na experiência do ministro Celso Amorim na Rodada Uruguai da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi explicitar as discordâncias, para evitar o encurralamento do Brasil no fim das negociações. A estratégia do governo anterior era seguir nas negociações para determinar, ao fim, se o Brasil aceitaria ou não o acordo.

É tema passível de debate o estilo adotado pelos diplomatas designados por Amorim para discutir a Alca, pode-se discutir se foi o melhor ou não. Mas seria mais interessante saber como estariam os industriais e a balança comercial brasileiros, hoje, caso os produtos americanos cotados em dólar desvalorizado competissem no mercado nacional sem tarifas de importação, como ocorreria se a Alca estivesse em vigor. Quem sabe, em vez de comemorar algo além de 36% de aumento nas vendas aos americanos, Dilma teria de sondar, durante a visita de Obama, a possibilidade de baixar salvaguardas contra os manufaturados dos Estados Unidos, como se reivindica atualmente contra os importados chineses.

Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras

E-mail sergio.leo@valor.com.br

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